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"falo pela míngua perfilando a margem do ilegível das sobras" - a poesia de Lauro Maia Amorim

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Fonte: www.otempo.com.br (Foto: Fernanda Carvalho).



Míngua

enquanto, quando dizer é tanto,
espanto com quanto pouco é dizer
o espaço, o abismo — o manto invisível
da visão: olho no molho da língua
molho com boca o silêncio da multidão
silencio a imensidão do que digo
cego pela voz, falo pela míngua
perfilando a margem do ilegível
das sobras que nas sombras,
do pouco que o olho
rouco persiste ocultar,
rouba o corpo à roupa,
o fio à faca,
o mundo à lavra
a palavra ao mudo




Narciso

De uma pedrinha a outra,
a água é película, espelho portando o peso
e o fundo, superfície
tão físsil quanto tudo que lhe é difícil carregar
na mão que se atira ao alvo, e as pedras ao chão.
de tudo a parte, inquebrantável, é partilhada
em cada mão destilada
e maculada, se entrega a si, pra se acenar tchau
E uma gota só de hálito se embebe
de um pólen fugaz – pedrinhas que não doem
Um jardim de piedade e razão,
perdão em granel








A parte mais inócua do mistério,
essa cura da verdade,
e o que se faz mister,
saber-se mais antigo
se esfacela como
surpresa
contraída em pupila,
que se delata e
e que me nina
o cerco aos olhos,
atrás dos olhos,
ainda mais libertos, são a
sua presa





Mor
Amor a morte
pouco importa
o que suporta
supor
amortal
a tal ponto
que o amor como tal
amor tece,
irrevelada,
amor talha
até que se desfaça
amorfa,
a
alma mor,
com essa venda
que se ata
amoral,
ao clamor
que mais se amortiza
do que a mordaça






onde quer que você me esteja
vai querer acreditar que é real
eu e você e todo mundo
e as mãos do mundo
no furo da mão,
surpreendente esse chão sobre o qual
se pode deitar e amanhecer
um desterro e ainda assim
sonhar com a úmida
lentidão do carrossel
que se encena
numa flor de praça.
É assim que se brinca
de pega-pega.





Intocado

Que via esse dia, de noite, irregular, a nascer do impulso. Mas de um sono que não queria apagar, nem mesmo se dar como evento de sol. Como fim de conto, que não cessa de contar. Acordada — repentino não acordar — me esmero, de desfeitos cabelos, de bocas sentinelas de cor e vida. Ida de um lado ao outro, esse outro é para sempre o mar, a se irrevelar na sua imensa nudez. A janela colonial raia-lhe suprema a trazer-lhe úmida, a brisa que se acortina sem se anunciar. À janela se assoma o olhar, que se espraia, mesmo sem se ver, pelo horizonte a clarear, quase cego, quase pego, quase corpo, entocado.



__________________________________

Lauro Maia Amorimé tradutor, poeta e professor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de São José do Rio Preto, onde leciona no Curso de Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. É autor da antologia poética bilíngue "Cores Desinventadas: a Poesia Afro-Americana de Harryette Mullen" (Dobra Editorial, 2014).  É autor também do livro “Tradução e Adaptação: Encruzilhadas da Textualidade em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling” (Editora Unesp, 2005), obra que explora as fronteiras textuais, discursivas e ideológicas entre o traduzir e o adaptar no espaço da literatura estrangeira.



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