![]() |
(Fonte: https://forum.ge/) |
um punhado de neve sobre o negro da seda noturna
para escrever com
o alfabeto de cristais das nuvens
diz silêncio engole flocos de palavras
e páginas em branco buscando os traços
do cinza que os reflexos germinam
nunca se viu um floco de neve
com quatro cinco ou oito lados não existem
possuem seis ou doze
nunca se pode juntar todas as letras da neve
e esculpir a frase
como o carinho claro da palma da mão
porque a noite não espera
com as sombras do ad meridiemé tecida a rede
de fótons no respirar da janela quando abrires a manhã
quando adiarmos as horas maiores e rápidas
após termo-nos deitado no interior da vagem do inverno
após as promessas que só os amantes mentem
em berlim
estou do outro lado da palavra caminhando
pelos corredores de vidro areia e relógio
aprendendo a difícil maturidade
de colher as quedas como se colhe jambos
carmins dos lábios macios do esquecimento
quando a ausência é a tua única resposta
o ligeiro sopro passa no final da noite desliza
pelo parapeito da janela mesmo assim é preciso
encontrar o alimento nas despedidas amadurecidas
e não confundir as cidades — uma refletida — outra a matriz
que se entrega não confundir a vida dupla
da moeda estou do outro lado da palavra
aprendendo a guardar a tua imagem
nas sílabas do tempo
temo decepcionar-te ao dizer
confessar-te que escrever
um poema não é juntar palavras refazer
para escrever um poema
é preciso profunda concentração
a do molusco enfiando-se no fundo
do mundo a do músculo em contração
a que precede o predador
antes de dar o bote porque é difícil
ouvir a quietude e seu mote o calado
de dentro do estômago das coisas do interstício
quando gritam as reproduções
de si próprias precisas e o fictício
conseguir captar esse silêncio inabalado
é fundamental é a referência
sem a mudez a palavra não vinga
perde-se na aridez e não se compreende
a linguagem da vivência o silêncio feito
de esquiva brevidade ou submerso no perfeito
bulício do maquinário da convivência
captar os ruídos do silêncio em tudo existente e imaginado
porque muitas vezes as palavras se espatifam
ocas nada evocam e se perdem na efervescência
para escrever um poema aceitar o dilema
é também preciso ter coragem a sagacidade
de abrir os olhos logo de cara
mesmo quando a claridade é por demais clara
***
sempre há um medo que nos persegue
senão são uns outros mais e nos seguem
carcome os pensamentos na latência
das manhãs palpáveis e das noites
de invertebradas sombras como a ardência
de uma ferida na ossatura do cotidiano
o medo passa a fazer parte do nosso corpo
do contorno e do nosso meridiano
intrépido e tenaz afunda-se na lezíria
mole da nossa existência um molusco
maiúsculo ou minúsculo nas relações seria
um miriápode debaixo da porta
na hora de abri-la e sair enfrentar as tempestades
fora e dentro de nós de nós o algeroz
o medo fareja nossa nuca
não se despede quase nunca
porque se transforma pode vir a ser metade
ou substituído por outros mais
marginais madrigais na absorta horta
sem um medo qualquer não vivemos precisamos
dele no nosso enredo tarde ou cedo
com ele aprenderemos ou apenas medo
***
o ruído das hélices do helicóptero
e seu motor não é o pulsar do vento erguendo
poesia e folhas secas desajustadas no caminho
e seu capricho o ruído dos ponteiros
do relógio marcando o palmilhar do esquecimento
sobre o chão do dia não o metrônomo
de uma nota na cadência do destino
e o silêncio do voo da coruja não é o assobio
inaudível da noite o martelo bate
para firmar as respostas como as teias pregadas no tempo
o ranger dos dentes das engrenagens não o som
da vida marcando o cotidiano
de recomeço e recomeço
enquanto em um lugar talvez distante
uma língua estrangeira e coasuas palavras
incompreensíveis cor de mel
e não precisa ser fora de nós
o ruído do destrancar a fechadura
não é a última palavra da liberdade
o céu é um naipe do soprano
vida e morte sopra o vento azul e sombra
o destino é uma agulha em cima das linhas
frágeis e finos e a composição
do movimento e dos momentos sigamos
nos discos que nos conduzem ao último ruído
mas enquanto isso
os sons
***
havia uma teia de aranha pendurada
na grade do rio como uma roupa no varal
a brisa forte respeitava a fragilidade
dos fios cor de dia ela não rompia
com o fremir abrupto e o mosquito
ali presos on havaem fazer uma viagem
em direção à nascente do Reno remando
um barco de folha de plátano
em estrasburgo
![]() |
(Fonte: UOL Notícias - Markus Schreiber) |
a neve cobriu a cidade de branco faminto
devorando ruídos devorando cores e cinza
as ruas ficaram encharcadas de nuvens
esmagadas pelos pneus escuros dos automóveis
lama de gelo cor de ónix
de mundano sobre os capôs as nuvens
pulverizadas permanecem intactas assim como nas bordas
das calçadas sobre os telhados das casas nos braços
das árvores desfolhadas e do céu ainda caem
os flocos flutuantes mas têm
aqueles que rodopiam se recusam a tocar no solo
apostam uma vida inteira no equilíbrio no suspenso
e se empolgam com a dança temem se juntar aos outros
e se perderem e ser apenas um branco
no meio do branco voam individuais insuscetíveis
na horizontal na espiral minúsculo pião
acabam se diluindo no chão
porque quem decide não são os flocos
deles não depende o vento
a berlim
_______________________________
Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000 (Global Editora , São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publicou em jornais e revistas especializadas como Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; e nas revistas mexicanas, Argos e Alforja. Participou do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua.