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Ilustração: Heather Breane |
Encostou-se ao meu ombro,
mais leve do que nunca tinha sido,
mais leve do que minha sombra,
encostou a boca (hálito de halls prata)
em um inesperado meio beijo,
sussurrou-me, quase inaudível:
- Tenho segredos.
Deu-me um sorriso simples,
virou-me as costas
e voltou para o céu.
suspiro
***
domingo à noite, a cidade se prepara.
as ruas se articulam, confabulam-se.
nuvens invisíveis bloqueiam o ar.
os faróis inteligentes se quebram a esmo
e iluminarão a passagem com luz fosca.
domingo à noite, o urbano, ainda escuro,
se alimenta, retroage, se prepara.
domingo à noite profunda, madrugada avançando,
amores vacilaram e se manterão;
poças de sangue negro correram
por entre sarjetas escondidas, mas coagularão;
beijos apaixonados eternos sofreram e se masturbarão.
a dor é a única constante,
a dor é quase uma regra
e pessoas que mal se mantiveram vivas no domingo à noite
mal se manterão acordadas na cidade chapada,
seu desafio mais simples será continuar respirando.
domingo à noite se fecha, já não é mais domingo,
embora ainda não estejamos vivos.
os miasmas foram distribuídos,
os loucos foram encaminhados,
os pontos de ônibus estão arrumados
para receber os pesadelos noturnos mal adormecidos,
os assédios e suores mal disfarçados,
as estranhas expectativas desoladas,
as baixas autoestimas baratas,
nas resignações acompanhantes, os fôlegos curtos
... isto é, nada mais do que o coletivo comum
... isto é, nada além do lento carrasco corriqueiro,
nada além do que a cidade realiza com louvor,
competência e eficiência:
a dor urbana, permanente e fiel,
intrigante e complacente,
mastigada, preparada e envernizada
nos domingos à noite,
antes da madrugada indecisa,
antes da cidade chapada,
pronta para os terrores insultantes do dia.
domingos à noite na cidade a chapar
***
A Poesia não é nada diante da morte
A Poesia e a arte não são nada
diante dos pedaços, do trucidamento da vida,
do esfacelamento de corpos,
do destroçamento da dignidade,
da destruição da história, das mentes, dos conceitos
A Poesia não manda nada, não muda nada
Em determinados momentos, em alguns lugares,
nestes lugares, nestes poços de escuridão,
a Poesia é somente uma voz,
difícil de se ouvir no meio do escandaloso ribombar,
um fio de voz,
muito fino fio de voz,
estupidamente fino fio exíguo de humanidade
É só isso e é tudo isso
É imenso isso e miseravelmente pouco isso
Ainda e por enquanto
há vozes nestes lugares
clamando por se perceberem ainda humanas
nada diante da morte
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Ilustração: Heather Breanne |
Formigarei por sua pele,
comerei suas pétalas,
me banquetearei de suas ventanias,
suas florestas, seu âmago.
Trocaremos sumos úmidos alongados,
deslocaremos puros murmúrios anoitados,
dormiremos com a janela em túnel escancarada
e esgotaremos todos os pecados,
nos fartaremos de todos novos pecados,
esqueceremos a sobriedade e os sonhos lá fora,
mesmo os mais sensatos.
Tomará minha mão.
Abrirá meus olhos.
Tocará meu sossego.
Um sussurro no meu ouvido.
Formigas pelo meu ouvido.
Comerá minhas pétalas,
e se apossará de minhas ventanias,
todas, todas as minhas ventanias.
banquete
***
a dança é uma vida
ou ao contrário
já ouvi dizer
se mexer e não cair da linha,
ou pular da linha
dançar no abismo
trocar os pés
simplesmente trocar os pés
porse de ponta cabeça, por pureza de intenções
seja o meu par
dançarei dançaremos
tornemos esta a nossa metáfora primordial preferida
ou ao contrário
já ouvi dizer
dançarinos
***
Quero lhe dizer
não, Preciso lhe dizer
cuidado, deixa o carro passar ,
não pretendo lhe atrasar mais,
porém, é muito importante
cuidado, deixa a moto passar,
deixa o sinal abrir,
cuidado, deixa meu coração transbordar ,
o pingo da chuva gelada
não acalenta seu rosto:
Gostaria de lhe dedicar um poema urbano,
uma trilha de palavras paulistanas
que lhe ajudem a atravessar o dia,
a secar o pingo gelado na testa,
a pisar pelas listras molhadas da faixa de pedestre.
Quero que sinta este poema
como o primeiro gole do café da padaria,
como a primeira onda do cheiro da manteiga
do pãozinho na chapa,
como a primeira lembrança morna
de nossos corpos ávidos de calor noturno.
E lembre que o primeiro sorriso que lhe acordou
nesta madrugada aturdida de frio paulistano,
o sorriso de uma boca torta ainda sonolenta
já saudosa dos agasalhos insuficientes,
este sorriso que lhe aquecerá durante este dia inteiro
mais do que aqueles agasalhos insuficientes,
aquele meu sorriso, ainda que torto, ainda que meiofrio,
foi a primeira letra do primeiro verso
deste poema urbano que lhe dedico.
poema urbano para aquecer chuva
Claudinei Vieira: poeta, resenhista, tomador de cerveja, e paulistano. Organizador do evento Desconcertos de Poesia pela cidade de São Paulo, autor de Desconcerto (contos, selo Demônio Negro, 2008) e Yũrei, Caberê (poesia, editora Patuá, 2016), além de vários textos (contos, crônicas, críticas, resenhas, poemas, poemetos) espalhados pela internet..