ave cesaria
desde que eu cheguei eu cheiro a medo videntes
os cães sabem antes de mim onde eu vou estar e me caçam
pelas ruas não conterrâneas como se eu entregasse cartas num desenho animado
ou num filme exibido às 14 h nunca em ponto justo eu
que nunca tive pavor de bicho de duas nem de quatro patas
muito menos de casa com quintal
agora tenho que disfarçar o que dois banhos
diários cifrados de confissões não resolvem numa terra em que
cada linha parece burrice
eu que deixei a porta sem tranca com a esperança de que uma firme jangada
resolvesse tudo bastasse esperar
não falar fado não ouvir rostos conhecidos não procurar a deus só viver
de cara pro sol até virar lagarto de pedra
como quando a gente é criança e segura o espirro pra se esconder
do que mora embaixo da ou dentro do ou ainda desde que eu cheguei
diabo fugindo da cruz é não saber o nome de fruta alheia
em travesseiro alheio pisar chão alheio
com pés que ainda restam meus a distância me deixando
cada vez mais míope a ponto de eu virar um contorno deixado pra trás
quebrado em mil partes mil sonhos mil cães correndo uma mãe e um filho
mergulhados no meio-fio na linha do trem
devolvidos pela correnteza de areia estrangeira
comendo comida de cachorro inchando terra tocaia fedendo a medo
sobrevivendo longe do mar
passei a eternidade sem dormir
lamber o pescoço com gosto de gente que conta carneirinhos
antes de dormir
bem-me-quer você me quer
mal-me-quer você me quis
acordado no sonho de areia movediça
que engole tudo pro centro feito milkshake de cimento
ser múmia embaixo do seu assoalho respirando
nada pra não te acordar pra sempre agora literalmente
em baixo dos seus pés chorando o leite derramado
a tempestade colhida o mundo que segue
independente das pessoas que não vão pra lugar algum
esperança de que esse seja seu lar pra sempre
te fazendo companhia depois da comida chinesa que mora fria
no lixo durante os intervalos entre o trabalho e a falta de azulejo
pra contar
completar as respostas dos enigmas anunciados em voz alta
ali por muito tempo depois da sua partida
como tesouro perdido ficar a cada ano milímetros mais
perto do olho do furacão afundando até chegar do outro lado
onde por fim emergir novamente filho de uma mãe amarela
talvez um pai em casa também um jardim com flores bobas
dessas que existem em todas as cores da paleta de estofados
arrancar em loop seus bracinhos insignificantes e vê-los deitar
no chão como eu fiz por você
tudo o que eu faço é em seu nome
eu vi você de camiseta
branca a alice eu e mais alguém na sua sala
tão iluminada a ponto de eu não conseguir
distinguir os detalhes da parede da sacada
o rio lá longe primeiro um professor importante que eu nem sabia
o nome e precisava impressionar pela segunda vez eu no palco
com um papel inexpressivo numa releitura de ricardo
III uma criança vomitada e eu limpando o seu rosto no quarto
A minha mãe que sempre aparece em casa sem eu saber e
derruba minha orquídea fúcsia tenta[em vão] replantar só os botões
em outro vaso coração por você eu engoliria toneladas de água
seca úmida empoeirada qualquer tempestade que te amarre como um nó
de marinheiro fugido na bocado estômago talvez assim eu me livre das
enxaquecas pós-sono e você volte pro porto que deságua em
mim.
Julia Raizé mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora particular de Produção Textual. Em parceria com Clarissa Comin, criou o blog de escrita Totem &Pagu e organizou o 1º Sarau de Poesia Totem &Pagu. Tem textos publicados no jornal curitibano RelevO e participa de projetos de incentivo à escrita e leitura, como o Leia Mulheres Curitiba e o coletivo Marianas.