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Ilustração: Joseph Bibby |
EU NÃO SOU NINGUÉM
Ela disse que estava sozinha. Eu disse que era sozinho no mundo. Ela pediu uma antártica e botou no meu copo. Ela disse que fazia teatro e tava de férias em Manaus. Eu disse que era ninguém. “como assim? ninguém?” aí enchi o copo dela e ordenei: “beba”. Ela abriu um sorriso grogue e segurou minha mão. Beijou meu rosto e disse “você tá perdido” eu confirmei o óbvio: “sim, não tenho onde descansar minha carcaça”. Ela acendeu um cigarro e começou a soltar bolinhas de fumaça até beliscar o teto. Aí uma hora ela suspirou e pegou três pinos de pó do bolso e jogou em cima do cardápio e cheirou de uma vez. O garçom me encarou com ar de desaprovação e eu disse: “vamos cheirar no banheiro” ela entrou comigo, baixou a calcinha vermelha e mijou no vaso. A zoada de urina mais linda que já escutei na vida. E voltou a sorrir perguntando: “você é ninguém mesmo?” e botei o pau pra fora e mijei também. No ralo. “seus olhos me dizem que você é alguém”. Então dei umas balançadinhas e guardei o instrumento. Ela levantou a calcinha e me beijou. Jogou cocaína na minha cara e começou a passar a língua no meu corpo como se fosse uma cachorra lambendo a cria. E disse que tava cansada. Eu também disse que estava esgotado. Que tava querendo entrar em outra onda. “estou cansado dessa vida”. Ela abriu a porta do banheiro e atravessou o bar até entrar num táxi. O garçom veio atrás de mim e eu disse que pagaria depois. Então ficamos no banco traseiro e o taxista começou a rodar. Dar voltas em círculos “vão pra onde? Não estou preocupado. O dinheiro é de vocês. Hoje é bandeira dois”. Aí ele ligou o rádio e começou a tocar aquela música triste do Hyldon. Ela foi ficando roxa e falei “já chega!” e joguei o resto da droga pela janela. O Taxista gargalhou. Ela descansou a cabeça nas minhas pernas e disse que iria fazer Shakespeare em São Paulo. Eu disse que sim. “Plínio Marcos também. Você curte Navalha na Carne?” ela não respondeu. O taxista parou num batente e disse “25 paus.” Peguei o que tinha no bolso e dei pra ele. Tirei a camisa e abraçamos-nos ali mesmo. No chão duro. No concreto da sarjeta e adormecemos com a luz das estrelas. Acordei com o barulho dos primeiros ônibus da manhã saindo da estação e “você não é ninguém” escrito com sangue no meu peito. Subi na linha do meu bairro e comecei a gargalhar alto. Gargalhei, gargalhei até chorar. A cobradora perguntou “tá tudo bem?” eu enxuguei as lágrimas soluçando e falei “eu não sou ninguém”.
CANINO
Ando triste por umas coisas. Não no sentido literário. Minha literatura anda bem. Nunca fui tão lido e tão pobre. Hoje saí de madrugada e parei num barzinho 24 horas e comprei uma garrafa de conhaque seresteiro. Fiquei na minha. Calado. Às vezes é bom ficar calado. É como limpar as lentes do binóculo. Calado as coisas se desenham melhor. E foi o que fiz. Sentei na última mesa e fiquei bebendo na manha até uma porrada se instalar e tirar a minha paz. Não me manifestei. Só observei os socos e pontapés. Aí o tempo passou. A claridade começou a estuprar as janelas e na hora de amarrar os cadarços e dar o fora, um dente, Isso mesmo. Vejo um canino intacto perto de mim. Peguei o bicho. Limpei o sangue e guardei no bolso e saí caminhando assobiando uma canção do Tom Zé. Aquela que fala da “menina Jesus”. Uma linda canção. Lirismo puro. Aí antes de acender meu último cigarro, vejo o cara que apanhou na briga chorando sentado no banco da parada de ônibus: “E agora, Jesus? Minha mulher vai me expulsar de casa. Ele não vai aguentar um bêbado banguela”. Tiro o dente do bolso e falo pra ele: “Calma. Taqui teu dente, cara. Um implante custa 800 reais em qualquer consultório dentário. Chega em casa e dá um beijo na testa dela”. O cara abriu um sorriso com os lábios inchados e me deu um abraço demorado. Deus deve ter aberto um sorriso também. A alma de Deus não tem dentes.
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Ilustração: Joseph Bibby |
INSETOS
O resto do pernil numa bandeja de inox. Dois de janeiro de 2016. Revoada de moscas azuladas. Natal de cu é rola. Jesus é carnaval. Uma ceia para insetos. Eduardo olhava o bicho comprado num supermercado e pensava: “pra quê viver? Tudo acabará em minhocas. Em adubo. Em carcaça para insetos” Eduardo sem mulher. Sem amigos. Sem dinheiro. Uma carreira medíocre de contista e a tortura de trabalhar como vigilante num condomínio onde era obrigado a dar “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”. O homem é o único animal que deseja boa coisa num mundo cruel e egoísta. Eduardo coloca o cd da banda Pearl Jam no gradiente e engatilha o 38 mirando na testa. Poemas saltam junto com miolos do cérebro. Agora as moscas mudam de itinerário. Cabeça de escritor miserável é banquete.
VEGETARIANO
“você precisa de um carro” ela disse. “você precisa de um tênis decente. Cortar o cabelo. Aparar essa barba horrível e correr. Correr, correr, o tempo passa, sabia?” e eu continuava olhando o gramado. A bola de futebol murcha ao lado do cachorro com sarna e o caminho do formigueiro levando pedaços de folhas. “você é um escritor incrível. Tens noção disso?” o pai dela abriu a porta e perguntou algo como “quer as linguiças de frango com pimenta? gosta de churrasco com molho de pimenta?” e as crianças pulavam com força na piscina. A água batia nos nossos pés junto com o sol que nos fazia lagrimar. “sei do seu romance. Tá bonito. Não precisa dedicar pra mim. Agora estou casada. Não quero que o Afrânio tenha ciúmes.” E o cheiro do churrasco enjoou meu estômago e levantei como um homem que iria morrer na guerra: “Tá bom, Vânia. Cuida-te.” E dei as costas como um filho que beija o rosto da mãe pela última vez antes de abraçar o mundo. E comecei a correr. A correr feito o retardado do Tom Hanks em Forrest Gump e senti pela primeira vez que o amor doía feito uma ferida cheia de pus e que só a literatura poderia desinflamar toda a saudade de Vânia. Até hoje passo mal com domingos e cheiro de carnes queimando. Ontem minha colega de trabalho me convidou para jantar um cordeiro em sua casa, mas fui cínico feito Judas: “desculpa, mas virei vegetariano”.
PSICOPATA
Ontem entrei num motelzinho do centro. Um lugar fedido a cu de traveco e xota de puta gorda com corrimento. A negra beiçuda da recepção abriu um sorriso largo quando recebeu 50 reais da minha mão. Aí me deu uma toalhinha com um coração bordado e um sabonete: “tá esperando alguém?” “não” “vai dormir?” “Não. Eu me amo muito. Tenho um ego imenso. Gosto de gozar em mim mesmo olhando para o espelho do teto. A senhora tem uma canetinha e um papel? Vou escrever um poema depois de gozar”. Aí entrei no quarto e escutei-a falando no telefone que estava com medo “tem um cara aqui com pinta de psicopata, Oswaldo. Vem pra cá agora. Estou com medo” aí saí nu de pau duro e disse “fica tranquila. Sou do bem”. Ninguém entende os poetas.
CORAÇÃO SELVAEM
Ontem estava com mixaria no bolso. Tomando vodca barata e fumando Derby no batente de um posto de gasolina. Aí uma mina perguntou se eu queria me divertir. Eu disse que estava sem grana. Mesmo assim, ela começou a se jogar em cima de mim. Disse que poderia me chupar no banheiro do posto ou embaixo de uma árvore do outro lado da rua. Tudo por 50 reais. Eu disse que não ia rolar e ela começou a me questionar: “Você é broxa? Ou perdeu o pau na guerra do Iraque?”. Eu, calado. E ela: “Você gosta de pica? Senta no pepino?”. Saquei que ela estava mesmo precisando de grana. Então, meti a mão no bolso e vieram 13 reais. Ela disse que com esse valor dava pra tocar só uma punhetinha. Saímos dali. No banheiro, pedi que ela deitasse. Ela riu, mas deitou no chão gélido. Eu falei baixinho: “Vamos ver o que toca aí. Vamos ver se teu peito abriga uma bela máquina jukebox”. Aí encostei meu ouvido no mamilo dela – e começou a tocar Belchior.