— Diga a Manuela que eu a amo!
A brisa do mar trouxe a voz angustiada, o pedido. O Forte estava vazio. No pátio interno as paredes brancas suspensas ao meu redor refletiam o passado. Na mente, a imagem de um homem vestido de branco com o uniforme da Armada Nacional. Um sussurro e depois a queda do moço em câmara lenta, em meio à fumaça do meu imaginário. O vento passava acima da Fortaleza Nossa Senhora dos Prazeres. Ali dentro a brisa solidificou a força daquele pedido. Uma imagem que valsou ao meu redor e sacudiu meu vestido leve. O casal ao meu lado naquele passeio já adentrara o interior da carceragem do Forte. Eu os segui, tocada ainda pela frase. O clima adensa-se naquele lugar onde homens foram encarcerados. Fico por uns minutos colhendo a dor dos prisioneiros – ouvindo o ranger de correntes, barulho de latas batendo no chão, odor forte de marinheiros. O casal olha para meu rosto petrificado. A mulher se preocupa comigo.
— Tudo bem, Morena?
Esboço um sorriso para não demonstrar que uma parede ergueu-se e as dimensões foram varridas naquela tarde. Estou na antiga prisão no Forte Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel. Estou ouvindo o recado do homem que tombou em batalha. Manuela? Um nome guardado por quase dois séculos. Um recado que apago ao sair do monumento belo e as gaivotas trazem a certeza de que agora são livres todos os homens. Ou, ao menos, devem ser livres. Não há mais navios negreiros, nem batalhas. A Fortaleza marca o passado e proclama a era de mares abertos. Ao menos aqui perto. Longe, os piratas seguem a saquear. Somália é um nome que lembra piratas modernos. Aqui tudo está deserto. Nenhum soldado a vigiar os canhões. Uma nuvem imensa passa acima com pressa. Hora de voltar para a pousada e comer aquele peixe maravilhoso com uma salada leve. Sei que hoje vou dormir sonhando com um homem que, antes de tombar para sempre, grava no tempo um recado para quem ama. Hora de lembrar que houve outro tempo onde o amor imprimia esta urgência de rastilho de pólvora, explosões, naufrágios, lenços brancos, fragatas despedaçadas, mulheres que esperaram, em vão, pelos seus amantes.
(...)
Mauro lembrava as suas raízes. Lembrava a velha cigana Zaíra que aparecia do nada, nas noites ao lado da fogueira. Lembrava a fala arrastada e pastosa daquela espécie de feiticeira errante. Cigana sem arrimo e sem destino. Era como se ela fosse uma aparição. Quando todos se recolhiam para suas casas ou tendas ela não se recolhia, ela simplesmente desaparecia. Surgia do nada, em outra estação do ano, em acampamentos distantes, como se ela fosse uma espécie de pássaro de mau agouro seguindo as comitivas. Nada nela era real. Nada nela lembrava uma mulher normal, mesmo ciganas normais. Sua pele tinha uma opacidade estranha, como se ela fosse de barro ou outra matéria que não carne. Seu rosto era impávido e seus olhos relâmpagos verdes que tremiam a cada fala. Sua fala era um misto de cólera e vaticínio... Quando ela dizia: — Amanhã vai chover. Não parecia uma constatação que pode ser contrariada pela própria Natureza, no caso de não chover amanhã. Era uma ordem grave e potente. No dia seguinte a pancadaria da água durava horas, e ela estava lá, ao lado de alguma árvore, como um corvo que lança agouros. Uma tarde, Mauro começou a falar sobre as maldições que atribuem ao seu povo.
— É verdade que os ciganos têm poderes para amaldiçoar pessoas? Queria saber se era possível, se realmente era amaldiçoado para valer, qualquer um que contrariasse, matasse, atacasse ou prejudicasse os seus.
Zaíra deu um riso cínico e olhou fundo nos olhos de Mauro. Ele tinha apenas quinze anos e pela vida inteira não esqueceria o olhar dela. Ela fez apenas uma pergunta:
— Acredita que o ódio mata?
— Sim.
Ele respondeu com a voz minguada, com o medo dentro do sim, arrependido de tocar no assunto. A cigana Zaíra falou, sem delongas, como quem ensina...
— Se o teu ódio é real, ainda que nem sejas do povo cigano, basta desejar e se conectar com o espírito da maldade. Ele ama o ódio com o maior amor do mundo, este espírito mal, ele vai agir. Basta pedir... Qualquer coisa. A palavra é o poder maior do mundo. A palavra dita, menino, vai causar mais estragos que alguma guerra ou vendaval. Basta desejar o mal e deixar na mão do maligno. O desejo tem que vir das entranhas, como se teu ventre fosse a terra, precisa retirar lá do fundo o desejo e somá-lo ao ódio e dizer o que desejas: peça ao Maligno. Ele adora atender pedidos cruéis. Tanto faz se é um pedido bobo como o desejo que uma pessoa sofra uma queda de um cavalo, ou desejar que uma maldição cole a esta criatura por séculos e séculos...
O vento sacudiu a árvore ao lado e as nuvens brancas súbito estavam estriadas de uma cor negra e densa. Mauro engoliu em seco. Ela colocou a mão acima do peito, enfiou-a em sua túnica vermelha e dourada e dentro de um espartilho de cor musgosa retirou um papel da cor dos pergaminhos antigos, colocou aquele papel quente por estar colado à sua pele enrugada nas mãos do menino e afastou-se. O fantasma daquela mulher o seguia, onde quer que fosse. Era como se ele tivesse conhecido um ser de outro mundo. E aquela oração com palavras em um estranho idioma era uma espécie de relíquia que seguia com ele pela vida.
(...)
Vovó Magnólia nota minha presença. Apenas ela. Cansada de tentar alcançar Caio, eu me afasto. Breve o coração dele vai se cobrir daquela camada espessa, uma camada que sela o invisível. Estranho pensar nesta camada como uma cobertura de bolo como aquela pasta americana. É bem assim a vida. Dor a dor as pessoas vão cimentando o coração com uma espessa camada que não quebra, para não vazar o ontem dolorido. O ontem dolorido fica sufocado, e em alguns dias, conforme a gente respira a dor raspa a massa americana e dói. Apenas a minha avó consegue sentir-me. Apenas ela entre amigos e família. No entanto, conheci uma escritora triste que sempre fica na Livraria Ponte de Tábuas, tomando um cappucino e escrevendo. Ela me vê. Conversamos telepaticamente. Ela diz que gostaria de ver Proust e não eu. Eu pergunto. Quem é Proust? Passo horas ouvindo sobre Proust. Ela o admira. E ela diz que adoraria que eu fosse Proust, pois eu poderia dizer se os escritos dela são Literatura ou desabafo. Poesia ou nada. E ela lê para mim e eu ouço e acho lindo. Ela diz que achar lindo não significa muito. Ela diz que as pessoas choram com propaganda de margarina e gostam de axé. Eu não sei bem o que é axé. Mas digo que meu avô ouve umas óperas italianas belíssimas e que minha avó adora Chico Buarque. Ela sorri e diz: — Berço de ouro o teu, Mel. Eu sorrio. Nasci em berço de ouro. Sim. Eu nasci. Ela diz que tem nome de escritora: Virginia. As minhas tardes ganham nova alegria. Sento-me diante de Virginia e tenho aulas de Literatura. De vez em quando ela se queixa por eu não ser Proust, mas, com o tempo deixa de humilhar-me por causa de Proust e começa a ser mais amiga. Uma tarde vejo minha mãe atravessar a rua e me entristeço. Ela era tão linda e agora a silhueta magérrima, as olheiras visíveis à distância. Virginia não se abala. Ela diz que existe um tempo para tudo e que este tempo de dor absurda vai passar.
As Filhas de Manuela recebeu Menção Honrosa na Primeira Edição do Prêmio Fundação Eça de Queiroz (Portugal).
Imagem: Ilha do Mel - Alfredo Andersen (1869-1935). Pintor, escultor, decorador, cenógrafo, desenhista e professor norueguês radicado no Brasil.
Bárbara Lia nasceu em Assai (PR). Publicou: O sorriso de Leonardo (Kafka), O sal das rosas (Lumme), A última chuva (ME), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial do PR) e Respirar (Ed. do autor), entre outros. Integra várias Antologias, entre elas: O Melhor da Festa 3 (Festipoa), Amar - Verbo Atemporal (Rocco), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo). Destaque em vários Prêmios, entre eles: SESC, Helena Kolody, Cataratas, UFES e Prémio Fundação Eça de Queiroz (Portugal).