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"A Danação" de Carol Piva

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FOTOGRAFIA | Heitor Magno






à Maryllu Caixeta, de quem este Josué vem sendo de há muito, e pra sempres
e à Alice Martins, pelo encantável apego em olhar, coisa de eternas(visua)(li)dades



   Começa quase ali, pelas sete da manhã. Não exatamente o dia-amanhecendo de Josué, menino nos seus doze anos de vida-vivida: ao lado de mãe-e-pai, o irmão-mais-velho, a irmã-do-meio e, até onde se recorda, da Zira, gata de estar todos os dias com eles. Uma hora antes, mais ou menos, vem resoluta pelo corredor a dona Nicinha:

— Levanta, Josué. Já-já passa a van para o colégio, vê se não enrola — nem mais um pensamento: o menino sabe que, não estando logo de pé, mundo vem abaixo. E a razão de tal e tanto zelo ao horário é para que tenham os dias “nos conformes”:

— Porque do jeito que as coisas vão, Luís, com essa meninada difícil, querendo saber só de dedo deslizando em telefone, e computador para cá, e tablet para lá, se a gente não acompanha, vira canção de acorde só, entrando tudo na desrazão — o pai ouve, balança a cabeça que sim, como se sustenido.

Josué veste o uniforme. A cama: arruma como dá, pelejando, sempre assim. Afofa, no fim de tudo, o travesseiro. E é quando tem a impressão da mais estranha normalidade do dia: nesse curto correr do tempo, interstício ainda em cores, entre aqui e lá, até que.

Em tempo: atravessa o quarto da mãe-com-o-pai, ensaia retornar ao seu. Pensa melhor. Olha panorâmico para a casa, “A gente vê mesmo muito zonzo de manhã, deve ser mesmo isso”. Até estranha o não sentido daquela cisma. E toma o rumo do banheiro, quieto-pianinho.

De frente para o espelho: penteia e despenteia o cabelo, gosta e desgosta da imagem que imagina. Lava o rosto. Enxuga bem as mãos. Recobra a austereza do dia e o silêncio da casa à noite. Dá a descarga, e volta a toalha ao aparador, e guarda a escova mais o Sensodyne fresh mint, e fecha a porta do armarinho. Mãe pede, ele faz com apreço.

Seis e vinte: a família se senta à mesa para o desjejum robusto preparado por dona Nicinha. Café amargoso, bem forte, “Que é para despertar direito”. Leite pelando com Toddy. Pão, manteiga, queijo, suco de laranja do dia, bolo Sol — “Dos melhores”, como se diz.

— Já escovou os dentes, Josué? — o pai também não fica atrás...

Resumindo: é sempre que seu Luís pergunta isso. E, em tão logo, despacha: o irmão-de-dezenove para o Sesi-Senai, onde ele faz o curso Técnico em Edificações, por vontade própria, antes da “tão disputada engenharia”. A irmã-quietarrona, para o último ano do ensino médio em escola muito boa, que fica dentro da Federal, conseguida no sufoco de derradeiros minutos. E Josué, que se pergunta diariamente “Por que pai e mãe pegam tanto no pé-só-meu assim?”, para as aulas de um sétimo ano fundamental até ali transcorrendo da melhor forma possível.

Assim, aliás, é que a vida deles se entoa. Mãe se estabelecendo da casa e lecionando meio turno: língua inglesa. Pai cuidando da biblioteca pública, com suas-lá indagações: de “apreciador de livros”.As crianças, apesar dos pesares, se endireitando no mundo. Um reparo aqui, sonho de ir morar na parte Sul dali: a vida indo.

Em três tempos: saem, quase atrasados, Miguel e Clara, os irmãos, enfiando de smartphone a carregador e caderno e o que mais possa ainda caber — na mochila. Seu Horácio buzina da porta de casa: “Vambora, Josué”, e ele, sem delonga, com material já pronto da noite anterior, faz um último mimo em Zira e entra na van, se despedindo.

Sobem pela Independência, toda vida. O Marquinho diz do último game, “Melhor que o Urban Chaos, muito irado”. A Jéssica fala — e como fala! — que o Jorge “beija bem à beça”. Beatriz: de mal com a vida. O Tiago, coitado, sempre-só dorme. Camila: o tempo todo no aplicativo com bastantes perfis. Diego: idem. Rafael: idem, ibidem. É o que se tem de-só.

À mesma altura, Josué olha: semáforo fones de ouvido pessoas cruzando becos viadutos sem saída ônibus abarrotado gente atrasada, “Foi o despertador que não tocou”, a celeuma toda em screens bate-papos papéis arames andares pavimentos. A rua e a faixa de pedestres. One life, one body, one chance. Casas distintas rastros angry birds na calçada amanhecida florezinhas de canteiro ziguezague-tique-taque o sol os carros, o chão da avenida cinza.

De fora da cena, entra o de sempre: gente sonhando gente sofrendo meio dormindo entretida cabeça alta cabeça baixa tropeçando, gente de tudo quanto é jeito — resistindo.    

O motorista engata a quarta, rua ainda boa de trafegar. Passam o Parque Mutirama, seguem para além da Rodoviária, vão cortando com ligeireza a cidade. “Mas com muita cautela, viu, seu Horácio?” — é a solicitação que resta aos pais das crianças conduzidas. Que sendo...

No ínterim, o que Josué vê desse tudo vai ficando bem dentro: cores estilos nuvem voando e se a moça perde o ônibus? ó o céu! mão apontando para onde? cabelos dançantes e vrum-zum o mototaxista na rua já a essa hora,meudeusdocéu, pessoas sinais o som do vento, como olhar? a dor o gosto o gesto, como expressar? o que ainda nem é... Josué vê: o dia a dia na vida. A peculiaridade, por assim sentir, é que ele vê, e a cabeça redemoinha. Mãe de um colega certa vez disse: “É porque você vê e imagina”. Recrudescendo, achou que sim. De nervoso, só se dizem que ele vê torto: vê “normal, ora”, com olho de menino.

Mas daí a danação. Quando vão chegando perto as sete horas da manhã, dia-sim-e-o-outro-também, esteja ele já na sala de aula esperando o primeiro professor do dia ou em casa, nos fins de semana, depois do café, en(tre)fins: vem aquele preliminar tremelique.

A vista, não demora muito, embaça. Num zás, mal vai clareando de novo, kaboom: que olhe para qualquer coisa ou pessoa ou mesmo vazio que seja, e então o menino verá, mesmo sem intenção, ele verá — azul. Gentes, coisas, espaços, um tão tudo...

Saber, de certo, há quanto tempo isso vem-se dando: não, nem Josué lembra mais. Uns dois, três, cinco meses. Ou anos. Só se conjetura. E já não se questiona de-mais.

Na escola: a primeira aula do dia é a da dona Ilse, que entra na sala calculista:

— Vamos abrindo o caderno, num segundo, que lerdeza, hein? — e já azulzinha.

Fato é que, de começo, isso de ver azul tinha incomodado, e muito:

— Onde se viu, que trem custoso, Pedro — ele de resmungues ao melhor amigo.

— Você jura que é de verdade, Josué?

— Juro. Quando vejo, bum: vejo tudo de cor uma-só, e é ainda por cima azul.

— Por que será isso, né? Mas até eu, agorinha, você vê azul?

— Até. Que estranho... Pois, pensando bem, ver assim é diferente. Azul é a cor do céu aqui de Solaris quando vai chegando fim do dia, vento fresco, a gente escurecendo junto. Também, no fundo eu sei que têm por trás desse azul todas as outras cores, ué...

Depois: não vendo remédio — afinal, oculista nenhum diagnosticava, nem mesmo com busca na internet fora possível descobrir algum importante detalhe, à exceção de uma remota alternativa aventada, de isso ser “ilusão de luminosidade”, o que nem para Josué nem para ninguém explicava coisa alguma — e de tanto arrumar justificativa, ele mesmo, Josué, foi-se acostumando, se acostumando, se acostumou. De cedo até a hora de deitar, tem dia que mais, dia que menos, o azul toma conta da vista. Todos os de convivência com ele estão também adaptados, e enfins... It is what it is, como a mãe vive dizendo nos seus estrangeirismos...

Terminada a aula: a molecada toda sai esbaforida da escola. Josué vai de van, volta de coletivo. Linha: Terminal da Bíblia. No percurso: não atina se é fome ou o quê, parece que sente uma tontura, “Ah, deve ser fadiga”, palavra ensinada pela professora de português, vira-e-mexe uma nova, ele lembra, olha para o chão da rua, está já em giros.    

Desatina até o ponto. Faz que entra no ônibus. Retrocede, é o próximo. “Mas que cabeça... essa minha.” Acena, em arquejo. Passa a catraca, desce a cabeça, guarda o cartão na mochila, zíper de trás. Levanta a vista de novo. Lancinante, olha como se monolítico.

Ziguezagueia. Desajeita de tal modo a cadência do pé que as pessoas de perto pensam que vai tombar. Olho no de fora, olho dentro, olho no dia. Sol tarde começando almoço para sair pai que está certo, deve prestar mais atenção no que olha no que imagina. Faz que vai-se sentar no banco oposto. E despalavreia, ao final, uma sandice qualquer...

— Viu coisa que inexiste ou o quê, menino? — ao que ele de súbito não responde.

Minhanossassenhora, por que eu não te vejo azul? — e então olha para mim, investiga. Ele: justamente quem eu venho vendo, penseroso, de uns três quarteirões antes.

Proparoxítono, mas já bem menos aéreo, ele prossegue, me encarando, decidido:

— Como é que eu olho para todo mundo e vejo azul e você, não? Quem você é?

— Josué, trinta e seis anos, escritor.

— Também?

— Também o quê?

— Seu nome também é Josué? que coincidência hein?não é estranho? você não está azul e é assim que eu vejo e até tento desver às vezes — nitidamente, ele desvairando.

— Não é estranho se você pensar que a gente vive no olho daquilo que olha de volta para a gente — a essa altura, encabulado, ele me atravessa como quem diz “E o que isso quer dizer, afinal?”, ao que eu finalmente redigo: Quem sabe você não me imagina?

— Você pensa que se a gente imagina vê azul como se visse só isso? Eu não acho que isso seja verdade, não, moço. Conheço um tanto de gente que imagina e vê normal.

— Pois eu sei de gente que olha, vê azul e fica olhando mais, confabulando, até bem tentando desinventar o azul que vê nas coisas, pondo cor aqui, não cor acolá...

— Ah é? Pois eu duvido. E quem é?

— Você, eu, por exemplo...

O ônibus dá uma arrancada na altura da Praça Tamandaré. O menino, que já tinha entrado zonzo, voa longe, fundo do veículo. Desfalece. Junta gente em volta. Reviram mochila, “Tem de avisar a mãe, Catarina”, isso, aquil’outro. Preciso descer. Tanta coisa para ler gente para ver seu Zito da portaria para cumprimentar compra para ser feita café em casa escasseando a tela do computador em espera do mundo, o sol as pessoas a vida. Josué.

Que me pergunta as horas, dobra a esquina vacilante, entra no ônibus pouco depois de mim. Não cogito tirar o pensamento dele, que me estoria ver azul. Azul decerto de fim de tarde, que enreda, azul sem dor. Já fora do coletivo, ouço hipotetizarem: “É fome”, “Talvez labirintite”. E o que mais. Josué vai acordando. Tenho apreço por ele. Nos acenamos, Josués...







Carol Pivaé uma das editoras-fundadoras d’O Equador das Coisas, jornal de literatura e arte que ziguezagueia entre o Brasil, os Estados Unidos e a Irlanda. Ficcionista e tradutora, tem uma-alguma porção de textos circunventados por aí e mais boa-outra de publicações como editora. Também é funcionária pública, do trtde Minas Gerais, Estado onde nasceu e mora atualmente. Pra giros de escrita e palavreio com: ArtBrazil e carolbpiva@gmail.com.



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