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"Mais luz" - Resenha do livro O fundo e a Luz, de Betzaida Mata, por Tadeu Sarmento

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 “MAIS LUZ

O mais profundo é a pele” – Valéry.

Por Tadeu Sarmento

Em carta ao amigo Oskar Pollak, Kafka defende que bons livros devem servir como “o machado para o mar congelado dentro de nós”. O Fundo e a Luz é um livro desses, que abre a machadadas insistentes o gelo grosso, em busca do azul profundo do mar. É um romance sobre como é difícil crescer com um sentimento de inadequação em relação ao mundo e Kafka (o inadequado-mor) teria adorado lê-lo, talvez até se identificasse com a protagonista, Carol, uma adolescente que assistimos crescer nutrindo uma estranha admiração pelo pai, pela invisibilidade para a qual o desprezo de sua mãe o empurrou; um pai que dias antes de morrer afirma: “um dia ainda vou passar a noite em alto-mar em um barco de pescador”.
Carol admira com certo pavor essa invisibilidade paterna, associa-a com o fundo do mar, com o conhecimento final e com o desaparecimento. Tanto que essa frase dita de passagem e aparentemente sem peso algum adquire tons proféticos depois de sua morte e se mantém impressa na memória da garota, feito uma marca d’água de tristeza.
É que certas escolhas que fazemos na vida têm consequências tão duradouras que acabam tomando ares de destino. O machado finalmente rompe o gelo. A menina ama o fundo do mar porque se sente deslocada, como se usasse roupas de mergulhador na superfície. Sente que seu habitaté outro, é aquele. A frase do pai funciona como uma âncora que a puxa para o fundo dessa nova experiência. Depois do seu primeiro e desastroso mergulho, passa a dividir o mundo entre pessoas da superfície e da profundeza.
Carol sente-se um desses seres da profundeza. Enquanto lê o livro que a ensina a mergulhar, medita sobre a dica que a orienta a entrar na água não saltando de vez, mas, dando um passo em falso, já que saltar seria arriscado, por conta do peso dos equipamentos. Mas a menina já está cansada de passos em falso e decide por bem se livrar do peso extra para saltar. Passos em falso? Ela os associa à vida na superfície, onde crescer significa moldar crianças à hipocrisia servil dos adultos.
Só que em seu mergulho de estreia algo dá errado. Carol pensa em desistir, mas, é encorajada a seguir em frente por um velho pescador que diz que, se ela sentiu medo, é porque não foi fundo o suficiente, pois, no fundo do mar o medo não existe – só o silêncio, a paz e a luz. É essa luz pacífica e silenciosa que ela busca contra a claridade barulhenta e ilusória da superfície. Quer o fundo do mar, quer esse encontro verdadeiro consigo mesma, então retoma coragem e decide continuar, tentar de novo, como Alice em sua queda infinita na toca do coelho.
Porém, se o fundo do mar é para todos (nossa protagonista ouve essa frase de seu professor) então as pessoas andam nas ruas com duas sombras: a primeira demarca aquilo que todos somos na superfície e a segunda sublinha o que poderíamos ser se atingíssemos o fundo da luz marítima. A decepção da protagonista é saber que as pessoas sempre optam pela primeira sombra e permanecem no comércio de máscaras da praça pública, negociando a preço de cobre os tesouros de ouro da infância – estes que Carol quer manter inegociáveis.
Conta a história que o velho Goethe morreu balbuciando as palavras: “mais luz, mais luz”. Que luz é essa que o poeta alemão vislumbra em seu instante final? É a luz que Carol persegue desde o início e que compõe o título do livro? Não sabemos. Mas o que intuímos da leitura? Só mergulha o suficiente quem não teve tempo hábil de voltar.
Então Carol voltou? Ou será que mergulhou o suficiente para, nas sábias palavras do velho pescador, ultrapassar o medo e atingir o silêncio, a paz e a luz? São essas as perguntas que o final acertado e enigmático de O Fundo e a Luz deixa no ar para que o leitor decida o que de fato ocorreu no último mergulho descrito no livro. E ainda que o público leitor pretendido para esse romance (que é um romance de formação) seja basicamente os adolescentes, o final continua formalmente válido, apesar de não ter sido bem aceito por algumas editoras que sugeriram à autora, Betzaida Mata, um final “mais feliz” à história, como se quisessem tutelar os adolescentes com a mesma hipocrisia que a protagonista do livro deplora.
O mais impressionante é que a escritora optou manter aquilo que não precisa de defesa prévia: sua integridade artística, e preferiu lançar o livro por uma editora pequena em vez de negociar sua honestidade estética com os tubarões do mercado. Uma posição legítima e admirável, sobretudo nos dias de hoje, quando escritores se dispõem a dar a bunda a quem só lhes pediu uma mãozinha.
Betzaida Mata escreve sem ruídos, como Karen Blixen. Seu texto é fluido e natural; conquista o leitor a cada página, sem necessitar fazer uso de frases de efeito ou de artificialismos retóricos. É porque a autora tem uma história para contar e tudo em sua narrativa conspira para fazer com que essa história avance. E para que ela prossiga tão clara e natural, a escritora oculta a vigilância que todo autor tem sobre seu texto, no intuito de que o leitor caminhe (ou mergulhe) como se estivesse sozinho – e esqueça que lê um livro.
O fundo do mar... Não é apenas uma das metáforas da morte. É mais estar sozinho para escutar a si mesmo, para conhecer a si mesmo, para ouvir pela primeira vez a própria respiração e entender, como Schopenhauer entendeu, que tudo se resume a isso: a um organismo vivo que defende a própria vida a cada puxada de ar. Penso que o fundo do mar também seja a metáfora da escrita; aquela solidão necessária que a escritora conseguiu atingir a duras penas, depois de passar o dia mergulhada nos afazeres de sua vida civil (de professora, mãe de quatro filhos). A intensa alegria melancólica de quem lutou o dia inteiro pelo direito de estar só, para escrever uma história que, se Betzaida Mata não contasse, ninguém contaria. Não do jeito como ela contou, pelo menos.
De modo que fiquei com essa impressão, a de que, quando escreve, Betzaida Mata se sente como Carol se sentiu no fundo do mar. Mas aí já entramos no pantanoso terreno da análise psicológica de escritores a partir de seus textos literários e, se até o Dr. Freud errou fragorosamente nesse intento, quem sou eu para me arvorar a tanto? O fato é que fechei a última página de O Fundo e a Luz com a impressão de ter assistido ao nascimento de uma grande escritora. Que ela consiga tempo necessário para aprimorar sua escrita e encontrar sua voz a cada texto; essa mesma voz que só ouvimos quando abdicamos, ainda que por breves momentos, de ouvir o restante do mundo. Porque às vezes precisamos do silêncio para ouvir o suficiente.
Que Betzaida Mata consiga mais tempo para escrever. Nós, seus leitores, só temos a ganhar.


Betzaida Mata, nascida em Campinas-SP, em 1977. Vive em Belo Horizonte desde 1979. Historiadora e professora de História e Sociologia no Ensino Médio. Escreve contos e romances. Menção honrosa no Prêmio Literário Cidade do Recife – 2010, com o romance “O fundo e a luz”, publicado em 2015 pela editora Kazua.
Fotografia e imagem: Rubens Cury.

Tadeu Sarmento é autor dos livros Breves Fraturas Portáteis (Fina Flor Editora, 2005) e Paisagens com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) é seu romance premiado pelo Prêmio Pernambuco de Literatura e publicado pela editora Cepe.



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