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Versão Editada - Edson Valente

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Ilustração: Markus Benedeus



VERSÃO EDITADA

A parte mais bonita do filme
uma cena de segundos em meio às quatro horas do
longa-metragem
Se perdeu quando as luzes se acenderam para a
troca de rolos no projetor

A melodia mais bonita do CD
Estava em uma faixa escondida
Que nem todo mundo ouvia pela falta de
paciência que se segue ao
silêncio

O meu exemplar do livro tem uma página rasgada.
Não pedi o de ninguém emprestado porque prefiro não
saber
O que me falta



FINADOS

Saio à rua e vejo os vivos
Pergunto os nomes das praças para os vivos
Esbarro no destempero dos vivos
Escuto os gritos dos vivos
A cantoria dos vivos
As derrapagens dos vivos
Os sinais vitais dos vivos
O horror dos vivos
Só vivos na fila do caixa eletrônico
Digitando senhas inválidas no mundo dos vivos
Vivos tomando sorvete
E gritando com seus filhos vivos
Sentindo calafrios e calores vívidos
Vivos odiando vivos
Porque odiar morto pega mal
Vivos se comunicando aflitos
Na mesa branca impecável da sala de
Espera do hospício dos que
respiram

Em meio a tanta vida
Tem tanta coisa que me mata aos poucos
Que na falta de mira da bala perdida
Vou me fingir de morto



ALS DAS KIND KIND WAR

Teu sorriso é sempre o princípio
De um sorriso
Há de se entender uma vez que não és mais
Criança
A criança tem o olho mas lhe falta a dimensão
Do todo
De modo que se permite não contrair lábios
E mandíbulas
Quando encara o outro
O sorriso da criança é sua interpretação do mundo
E assim sorri da vida que vê
Em tudo:
O menino que parou o tanque com a mão
A flor que se abre em cor sozinha no asfalto
A voz grossa e o bigode do homem
Os desenhos das embalagens de plástico
A fumaça que preenche com formas de gente o espaço
O palhaço que se regala no circo
O infinito que brota no abismo
E acolhe o sonho

Quando cresce não sorri mais até onde o riso lhe caberia pois enxerga apenas:
O tanque solidão no asfalto o plástico a fumaça o circo o fim o abismo que engole
O homem

E maxilares rígidos



FORA DE ALCANCE

Paguei a desistência
Com Visa que a fatura morre
No futuro que prega a bula
Na farmácia mais próxima parcelado
E sem receita de intenções como quando
Comprei a vista
Em que vou mergulhar
Cordilheira acesa
A mesma onde escalei os corpos
Mais ornamentais
E cravei picaretas
Em espíritos impregnados de manteiga de cacau colorida
Como o arco-íris póstumo, posto que
É a ponte que vemos mas tarde
Demais reconhecida como o
Alvoroço das faixas de ultrapassagem
Proibida e o brilho esfacelado do
Penúltimo dente da arcada a ser
Reconhecida entre o
Choro fingido dos olhos que
Abriram caminho para o
Mar de angústia que se fechou no
Desenho feito em cimento
Fresco por um peito que se abriu
Demais
Sem o desfecho de volta
Esperado em vão pelo olho que se entristece e
Agora saltou meio fora de órbita
Na busca de um sinal que indicasse a
Voz de comando para a partida
Que não a do planeta,

Uma de alcance a crédito de vida



Autor do livro Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014), Edson Valente é jornalista e também autor do livro de contos Refluxos (Ateliê Editorial, 2010). Cinéfilo admirador de Aleksandr Sokurov e Wong Kar-wai, corinthiano, não vive sem canções desesperadas de bandas como Dirty Three, Low, Tindersticks, Red House Painters, Antony and The Johnsons e The Jesus and Mary Chain. Nunca assistiu a uma luta de boxe, mas suporta ver sangue.

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