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O poeta do ínfimo - Tito Leite

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De Heráclito conta-se esta história: Certa vez, estranhos chegaram a sua casa para saber o que fazia. Ao entrarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram de pé, impressionados. Encorajando-os a entrar, Heráclito teria pronunciado as seguintes palavras: mesmo aqui, os deuses também estão presentes”.
Manoel de Barros, com a mesma busca pelo indizível, declara que “há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas”. Este mês completa um ano que o poeta alçou voo sem asa. Igualmente como no caso acima, o húmus no qual se forma a sua poesia tem no seu ordinário a contemplação do sublime. Com ele a linguagem poética ganha um novo limo. Entre rios e árvores, seu pantanal transcendentaliza as formigas do inefável.
Para esse encantador de palavras, manifestar o extraordinário no ordinário seria “fazer o desprezível ser prezado”. Assim, a investigação das grandezas do ínfimo possibilita que as coisas invisíveis se revelem com toda a sua exuberância.  Deixando o próprio autor falar:

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

O poeta, em ruptura e invenção, busca no que chama de inutensílios e pessoas desimportantes o significado e o significativo de sua poesia. Nessa direção, “as coisas que não levam a nada / têm grande importânciacada coisa ordinária é um elemento de estima”. Tal um franciscano, ele dialoga com malucos de estrada, sapos, formigas, baratas, moscas de hospício, lagartos, etc.
No livro Matéria de Poesia, descobrimos que as coisas que não prestam para nada assumem grande valor para o poetizar. Essa opção preferencial pelo traste é bem trabalhada no aclamado livro O Guardador de água, de modo especial, quando fala, por exemplo:

O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase
coberto de limos —
Entram coaxos por ele dentro.
Crescem jacintos sobre palavras.
(O rio funciona atrás de um jacinto.)
Correm águas agradecidas sobre latas...
O som do novilúnio sobre as latas será plano.
E o cheiro azul do escaravelho, tátil.
De pulo em pulo um ente abeira as pedras.
Tem um cago de ave no chapéu.
Seria um idiota de estrada?
Urubus se ajoelham pra ele.
Luar tem gula de seus trapos.

Barros volta a afirmar sua nova definição de poesia em que ser poeta é ser inútil. Nessa demência peregrina, em que os homens deliram e apreciam o delírio do verbo, há uma fabricação de novas sintaxes. Essa poesia oferece um novo olhar para as coisas que estão ao nosso redor; estica o horizonte para que os entes sejam vistos na totalidade de suas possibilidades coisais — mesmo que um pássaro seja uma árvore ou uma pedra deseje tomar a forma do próprio poeta.
Em O Livro das Ignorãnças, o poeta nos convida a um novo olhar e enraizamento com as coisas: “as coisas não querem mais ser vistas por pessoas/ razoáveis: de forma razoáveis:/ elas desejam ser olhadas de azul —/ que nem uma criança que você olha de ave”.  Na mesma obra, nos deparamos com esses versos: “Desinventar objetos. O pente, por exemplo. É preciso dar ao/ pente funções de não pentear. Até que ele fique à/ disposição de ser uma begônia ou de uma gravanha”.
As palavras e as coisas ganham uma liberdade, são salvas da mera objetificação e abrem outras possibilidades imagéticas para os objetos, como também para as palavras que faltaram. Assim, o pente é laureado com uma nova utilidade além de pentear, podendo ser um outro ente cultural ou até parte de uma obra de arte, isto é, o pente não está condenado a seu mero fazer, o pentear.

Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
— Que os poetas aprenderiam —
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.

Esse fazedor de inutensílios procura, então, restaurar uma língua primeva, em que se possa chegar ao grau zero da linguagem, “avançar para o começo/ chegar ao criançamento das palavras/ lá onde elas ainda urinam na perna”. Seu propósito é cobiçar as palavras que não sejam acostumadas a ser ditas. Para chegar a esse estágio, o poeta precisa “desaprender oito horas por dia” e permitir que o homem se torne coisal.
Em muitos momentos, o nosso poeta está bem próximo do pensamento de Martin Heidegger. Para esse filósofo, o caminho do pensamento passa pela linguagem, mas não uma linguagem qualquer que seja um instrumento em meio à publicidade das coisas, perdendo-se no cotidiano. A linguagem, para ele, guarda um sentido mais original, é um bem que garante a historicidade do homem. Essa volta a uma linguagem originária significa um retorno aos pensadores originários (pré-socráticos), os phisikoi.
Na experiência do pensar originário, o Ser era compreendido como physis (natureza). A palavra physis, para os gregos significava tudo aquilo que faz brotar, nascer, surgir, florescer. Heidegger tem como intenção recuperar esse sentido perdido e reconduzir o homem a seu sentido originário, do qual estamos distantes.
Para esse pensador, é no poetizar que se encontra uma vinculação do homem com a physis. Ao considerar a poesia um elemento essencial para refletir o sentido do homem, é o poético que permite o habitar do homem, ou seja, habitar é entendido como construir.
É digno de nota mencionar ainda que para Heráclito (o obscuro), a natureza era entendida como a unidade de todas as coisas, e a própria natureza ama se ocultar. Manoel, por sua vez, declara: “o escuro me cintila” e “as palavras me escondem sem cuidado”.  Aqui o poeta escurece a pretensão de sentido das palavras.
Nesse poço escuro, a própria relação com a verdade era interpretada num sentido diferente. A verdade para os gregos era chamada de Alétheia — um jogo de desvelamento em que a cada desocultamento nasce outro ocultamento. A verdade não era uma chave, mas um enigma, uma costura de Penélope num manto inacabado.
Com o poeta não é diferente, a arte é o colocar-se em obra a verdade. Mesmo que tenha que chegar ao grau de brinquedo para ser séria, “há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”. O que faz bem ao poema não é o seu sentido normal — ao contrário, é a doença das palavras. Dizendo com Barros: “Eu sou o medo da lucidez”.
Em Manoel de Barros e Heidegger, essa relação não é passível de ser conceituada em um discurso convencional. Para alcançar uma linguagem originária é preciso aprender a viver no inefável. Com o filósofo encontraremos uma casa do ser; com o poeta, uma linguagem madruguenta, mas ambos conservam o enigma do começo.
Essa linguagem adâmica de Manoel de Barros seria uma leitura dos pré-socráticos pelos Fragmentos? Ou um Heidegger em busca de uma nova relação com o mistério (compreendido como o Sem Fundamento)? Por meio de uma ontologia pelo avesso, enraizada na barriga e nas tripas do chão, o próprio poeta, em uma entrevista a Alberto Pucheu, deixa a sua resposta: “Li Parmênides vai pra 50 anos e o que me restou dele foram 5 ou 3 emoções. Não sei grego. Com poetas gregos convivi em traduções. Se existe em minha linguagem alguma experimentação à maneira dos poetas gregos, há de ser porque a poesia tem a mesma fonte: a natureza. E criar começa no desconhecer”.





Tito Leite, nasceu em Aurora, Ceará, 1980. Faz parte da comunidade monástica do Mosteiro São Bento de Olinda/PE. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010), atuou como professor da disciplina. Têm outras coletâneas publicadas nas revistas Mallarmargens, Germina e na portuguesa Triplov. 

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