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Ilustração: Silvia/deviantART |
Tudo começou no café da manhã de qualquer dia desses. E poderia ter sido em qualquer lugar da casa, mas foi sobre a mesa, na mão que segurava o pão, que ela observou pela primeira vez aquela ausência na unha. Cansada de reprimir seu hábito de roer, roer, roer, fingiu ignorar. Uma hora cresce. Tudo cresce. Porém, no dia seguinte, na mesma mesa, já não havia nenhuma nas mãos. Depois, foram os dedos que sumiram. Incrível era como ainda empregavam alguém sem mãos. Incrível era como alguém que também perdia os pés, conseguia passar pelo portão de casa, adentro. Fingiu ignorar que cada partícula daquele corpo que tanto amava, desaparecia como cachorro na nuvem. Aquele tronco sem pernas, sem braços, sem cabeça, na poltrona da sala, era mais bizarro que seus sonhos de menina. Onde vão danar os sonhos da menina quando ela cresce? Naquela madrugada, qualquer uma dessas, ela chorou. Ela chorou ao ver seu mamilo, qual ponto final do corpo, desaparecer. Segurou como pode, suportou o frio da cama vazia, até o clarear do último café da manhã. Ali, numa manhã qualquer dessas, diante de seu corpo ausente, com o testemunho das moscas que sobrevoavam o derradeiro pão, pediu o divórcio.
Willian Delarte é autor dos livros Sentimento do Fim do Mundo (poesia, 2011) e Cravos da Noite (contos, 2014), ambos pela Editora Patuá (SP). Premiado no II e III Festival de Literatura da Faculdade de Letras (FFLCH) e finalista da 15ª edição do “Projeto Nascente”, todos da USP. Tem publicações em diversas revistas e antologias. Foi co-editor da revista Rebosteio Digital.