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Ilustração: Zhang Jingna |
Nobre figura
De vez em quando a voz das folhas a acalmava. Sofria pelos horrores do mundo. Sofria porque sofrer mantinha sua face pálida recoberta de vida. E seu choro alto. E as velas de sétimo dia. Era uma Maria.
Estado de graça
O estado de graça demorava a chegar. Sua mãe logo o notava, quando ela disfarçadamente diminuía o embainhado do vestido, sempre viscose. Não se continha naquela sobriedade sem lacres, ou velas. A lua sua fiel escudeira, clareava os campos para que os moços se deleitassem com seus cachos de veludo valsando no ar. Não passava ruge. Não ensaiava a face. Não pintava unhas. Abusava da lavanda. Deixava por prazer alvinha suas anáguas. Quando a neblina aparecia, hidratava lábios... Seu estado de graça, mesmo de graça, gastava retina galopes palavras.
Evocação
Lanço-me neste mar de respostas que é a vida. Sôfrega. Solar. Desmedida. E não há tempo para explicações. Há o sopro das linhas. No ranger do tempo, prossigo nas dimensões que florescem caminhos. Nada sei dos epílogos, curvas, cascatas. O farol é o sonho. O sonho chama. Eu, que sou moço de fé, acredito e sigo com uma lágrima no bolso, uma pergunta na cabeça e um amor entre os lábios. Viver é borboletear esperanças para que um dia elas toquem o céu das vontades.
Futuro do pretérito
Queria dizer que era de carne e osso, embora fosse mais pecado. Queria dizer que havia pecado, embora fosse simplesmente desejo. Queria dizer do seu desejo, embora fosse apenas um sonho. Queria dizer do sonho, embora houvesse o tempo. Queria dizer do tempo e já era o último dia da sua vida.
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Ilustração: Zhang Jingna |
Dramaticidades
Pois não suportava ser feliz. As palpitações, provocações, incertezas: o seu estranho modo de prazer. Gostava das noites de solidão, mas com luz acesa. Flores mortas para marcar páginas. Bafo de chuva. Velhos sonhos engordurados. Seu pensamento: uma masturbação confusa entre o é, o foi e o se. Esperava pelo próximo conflito, tal como a atriz anseia o aplauso. Pendurava dramas ao amanhecer. E não sorria por ser pesado demais.
Da janela
Chove no sertão. Cá dentro despetala uma dor seca, escassez profunda. Uma saudade líquida que não para de latejar. Chove no sertão. Água lava as calçadas. Enche os baldes da vizinha. Chove no sertão. Uma criança passa feliz. E eu não sei chorar.
Ode à dor
Eu começo pela dor. A dor estagnada, presa no instante, acionada às outras dores, assim no plural, assim grande, aveludada, felpuda e doída. A dor que insiste em me agasalhar, em fazer de mim menino com medo da solidão. É a dor. É a força que essa dor provoca em mim. São os mundos. Os moinhos. As cores distorcidas. As pessoas. E eu. E a dor. O que faço? O que vejo? Quem eu sou, diante dessa dor, universal dor que me alimenta desastrosamente de mim? É dor, suspiro único, grito entre portas, é dor, tudo o que sei, tudo o que por agora sou. O drama. A ópera. A traição. A mãe que perde o filho. O homem e a seca. Os olhos secos. As folhas secas. A dor. Deus. A dor, o que posso agora escrever na vã possibilidade de fotografá-la? A dor que corre de mim para mim. A dor que não sabe meu nome e que come o pouco que restou. A dor e eu. A dor de ser. A dor de pensar. A dor de falar. A dor de errar. A dor de morrer. A dor de chorar. A dor de lembrar. A dor sou eu.
Autor dos livros Pétalas Raras (Motográfica, 2013) e Estado de graça (Penalux, 2014), Abraão Vitorianoé santa-helenense do sertão paraibano. Poeta e professor, Abraão tem textos publicados em antologias e revistas a nível nacional e regional; além de publicações acadêmicas sobre leitura e literatura infantil.