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Ilustração: Gilad Benari |
covarde, te odeio. Você com essa ruga na testa e esse ar de esperança, você assim desse jeito, sinceramente, parece um boçal. Você já disse isso, não é?, já disse de si mesmo: que é um boçal, etc. – você é um babaca, Pável! Olha o seu nome, tirado de romance russo: nome de louco, de sonhador. Você com este ar de derrota na testa – onde apanhou essa ruga, e esses seus olhos: terrivelmente apagados. Como é que pôde transformar-se em alguém tão pesado, a pele macilenta, a boca desbeiçada, o queixo caído no peito. Como é que pode ser isso: um sonho desgraçado, uma esperança perdida, um náufrago dos próprios projetos, eu diria um idiota. Não digo, não, meu Pável, porque afinal de contas hoje é seu último dia por aqui – é a última vez que nos vemos, não é mesmo? Depois deste instante, e adeus. Você já contava com isso e esse gesto de adendo não serve pra nada; confirma só a natureza duvidosa de um cara cheio de vaidades, e também, é claro, seu velho prazer em roer o menor naco possível de insatisfação, sua culpa ou qualquer coisa assim. “A história é uma virgem donzela”, me disse, e deve mesmo se lembrar da talentosa exposição que fez, uma daquelas elucubrações tão suas. Eu lembro muito bem e agora mesmo posso ver, em seus olhos escuros, o abismo de sonhos, temores crispando, o torvelinho inquieto girando na cuca; posso te ver, sonolento, calado, a noite toda aí, quase inerte, tomando cafezinho e copos d’água. Não quis comer, recusou-me o vinho, não quis conversar sobre coisa nenhuma. Cada palavra minha te fere, se agita e se mistura em você – as palavras te mordem, eu sei, eu vi que agora até se levantou, saiu dessa poltrona e andou por aí – deu seus passinhos, né? Quase dançou, percebi. Depois se encurvou novamente, meteu a cabeça entre as mãos e ficou, o rosto erguido, a porra das rugas gemendo na testa. Agora eu as vejo melhor, agora que cai essa luz sobre ti, eu as vejo, é verdade: ela fala, meu caro, essa luz. Talvez você seja tragado por ela; e eu bem sei que acredita, piamente, Pável, na luz oscilante que gira à sua volta. Não se envergonha, não; olha, se quiser ir embora de vez, eu entendo, eu aceito sua causa com todo o respeito, considero-a corajosa, cheia de virtude, a virtude luminosa dos grandes, naturezas destemidas que se atiram e seguem, à correnteza do destino, sem medo ou compaixão – eu bem sei que os heróis são assim, como estátuas de bronze, o rosto resoluto e o peito erguido: o destino à sua frente e uma história às costas....Você quer buscar uma aura pro mundo... o mundo tem andado muito triste, o mundo tem andado mesquinho, acinzentado também, ele parece ter até ficado imóvel depois de tanta agitação. Uma sombra a rondar a cabeça: é o demônio mofino da dúvida, atormenta teu sono e vigia tua mente; por isso passou acordado esta noite inteirinha, e é claro que sabe o problema que você nos trouxe, uma destas noites, e todos já devem saber e já não resta mesmo qualquer dúvida de que você traz sempre esses problemas: sempre se referem a você como um derrotado, doente, um moleque carrancudo, um velho imaturo, um tipo fracote; que amofina a si mesmo e vive esmolando perdão, a qualquer um, ao mais próximo que possa estender a mão e oferecer, por piedade, uma migalha de humanidade. Assim você ficou, e continua querendo ficar: rasteja e revolve a ruína, quer revitalizar a vida e no fundo, Pável, você a detesta! De-tes-ta. Você encaixotou sua literatura, desejou ser jesus cristo, saiu gritando pela rua. Pois é, engrolou uns latins, bateu no peito e o resultado tá aí: vendendo traça pela rua, muito atento ao modo como eles se viram – os “da rua” -, tentando apreender os seus códigos. Mas não consegue enlouquecer: queria ser como os nautas e os bardos, queria viver aos soluços do vento, queria naufragar feliz pelas tardes de outono – queria cafés, cabarés, a rudeza das noites passadas em claro, a penar pelos outros, queria arrancar a estupidez do trono e restituir o lugar da verdade. Eu preciso dizer a você, meu querido, e agora eu te sublinho – queridíssimo: o herói saltou do prédio e, quando viu, estava sem asas, mas não morreu no calçamento – e sim durante o vôo, no ar... Você vê esse corpo na rua, acredito, você com certeza pode vê-lo, eu bem sei, deve passar por ali a cada um de seus dias, guardou sua imagem, o rosto sem olhos, a boca na testa, recolhe em sua mente os farrapos, cada tico de vida daquele luminoso ser, o herói sujo de óleo, as penas em sangue, um pombo no trânsito e você logo vê: a bomba instalada na cidade, as galerias lá embaixo fermentando, você sabe disso, você pensa no tráfego, em todas as vias, você vê e pensa e consegue enxergar tudo isso; tudo circula em seu corpo, os males do mundo são seus, a parafernália infernal da cidade te habita, um pombo gorducho que pousa no asfalto parece a você importante. Acha que tudo é descritível, concreto, apreensível e – o que é pior – transformável, corrigível. Acha que tudo funciona integradamente, basta observar, e mais que isso, basta querer observar e então dar – o definitivo, o proverbial: o empurrão. Não é isso, Pável? E agora percorre o terreno da morte... É a última noite, não é isso? Nem sei bem por que, nem sei que me deu, pra querer recebê-lo. Seu rosto surgiu-me da sombra, passou depois a falar – daí murmurou e afinal emudeceu, ficou aí pelo canto, até deixando pensar que era também feito de sombra, uma nódoa, ou um espectro, não sei... E se soubesse, de que adiantaria? Mas não é o caso de ter medo, meu Pável: o mundo é mesmo muito desumano.
Autor de Entulhos (Patuá) e do blog não basta, Adriano de Almeida nasceu em São Paulo, em 1975. Escreveu como autor e colaborador para as editoras Ática, SM e FTD. Mestre em Letras pela USP, ministrou cursos e proferiu palestras em instituições como o SESC, o Colégio Oswald de Andrade e a Faculdade Rio Branco. Teve narrativas e artigos publicados nas revistas Celuzlose (n°1) e Crioula (USP, n°11 e n°14) e nos blogs Facada X e Lacaneando. Trabalha atualmente na escrita de seu segundo livro.