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Ilustração; José Soares |
Toma a sua sopa em cadência; que decadência, nega! andando pela escada zonza. Nunca tem medo: do peão que fala em te foder, do besouro perseguindo seus mamilos, do corcunda do quarto 12, te olhando difuso, rendido à benzina. Não tem medo do PM que passa os papelotes pra vila. Mas sua hora vem chegando, já sabe. Rebola menos agora, e olha muito agora, nunca olhou tanto: para as ambulâncias, as enfermeiras, e o que te interessa no corcunda são as ampolas que ele guarda. Uma sombra, nega – são as patas absurdas perseguindo teus requebros. Tem o paraíso ameaçado – os discos, a cachaça, a pensão que te segura – tuas unhas não conhecem mais esmaltes, e ainda que apele em usá-los, não inibirás tua falência, teu descascar em cores fortes ou suaves. Nunca foi suave, nega, os olhos sempre injetados, o rosto, pedregulho maduro, sorria por convicção – nunca foi levada! Anda aparvalhada, e tua coragem de hoje é motivo de riso. Amedronta-se com o mínimo ruído, das baratas que se aventuram nas gavetas, de traças que ousam por tuas roupas, teus papéis. Você não tem tempo, ou o tem em excesso, como fartas águas de um rio estreito. Nunca nadou num rio, só viu o mar uma vez. Não suporta o tempo, contado em programas de tv, em abrir e fechar de portas da vizinhança, em ecos, espasmos, vapores, vagares. Gosta de ouvir o sexo da universitária do quarto vizinho, que sempre leva umas amigas para farrear. São gatas, você pensa. Refestela-se? Talvez gostasses de participar? Não, fica compungida, horrorizada, se deita com a expressão bovina de quem nada ouviu. Mas, sim, depois você desce, sempre a soprar tuas sopas, dando bocados, pra conferir as moças. Elas são sempre lindas, e nunca são as mesmas. Onde a mocinha as encontra? Você quer teta, nega? Nega! Quer gemidos mais doces que os das garras ásperas dos Mores Majores Belchiores? Um buraco começa a escavar o teu peito, já nota – e arrota, solitária, cenas de outras paixões... Vendaval... O de barba do bar te encarando. Dizem-no alinhado, prudente, professor. Seu olhar cristalino desenha memórias no ar. Pensa na infância, é o que dizem. E você, nega, na infância? Não te ocorre voltar ao passado, cimento carcomido entre tábuas rangendo, você arrota, solitária. A cama do homem de olhos macios: alinhada, prudente. É o que quer? Amava Amarildo, que não retornou mais de Santos depois do aborto. Sangue morto. Mas teve o passeio de barco com cravo amarelo nas tranças. E um vinho importado, bebido no Parque da Luz, ao som de foguetórios. Era Réveillon. Ano após anos, tudo passa: Amarildo e a beleza das suas tranças, os Majores e os Sertores e os Minores, olhos mortos absortos de abortos, olhos leves espumosos veludosos. Tudo passa. As meninas entre risos nas escadas, as famílias com sacolas e crianças, viaturas e ambulâncias sob a chuva. Tudo passa. Nega fica. Nunca atirou tuas bitucas nos passantes, nunca apelou ao professor de barba fofa. Mas é a mesma coisa, nega, ter escola e ter maldade.
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Foto: Lúcia Lima |
Autor de Entulhos (Patuá) e do blog não basta, Adriano de Almeidanasceu em São Paulo, em 1975. Escreveu como autor e colaborador para as editoras Ática, SM e FTD. Mestre em Letras pela USP, ministrou cursos e proferiu palestras em instituições como o SESC, o Colégio Oswald de Andrade e a Faculdade Rio Branco. Teve narrativas e artigos publicados nas revistas Celuzlose (n°1) e Crioula (USP, n°11 e n°14) e nos blogs Facada X e Lacaneando. Trabalha atualmente na escrita de seu segundo livro.