a mesa de fórmica vermelha
de pé no portão de ferro da casa, a velhinha, de
camisola de flanela e vassoura na mão, olha
a rua. casa envelhecida, pintura gasta, portão
enferrujando. o tempo, quanto tempo, olhar
a rua, lembrar. esquecer. vasos rachando, flores
cansadas. a gente se apega aos bichos e os bichos
morrem. melhor não ter bicho nenhum, evita de
a gente sofrer: saudades do tobi, ele era tão
companheiro. pouco tempo: o bairro se verticaliza, a
vizinhança muda, a vizinhança mudou. rostos
desconhecidos. as paredes logo serão derrubadas, o
armarinho do banheiro será sucata, a cortina do
chuveiro, a antiga TV. sucata. a mesa de fórmica
vermelha da cozinha (aquela mesa de fórmica vermelha
na qual os filhos fizeram, em tantas e tantas
tardes, a lição de casa). e agora os filhos discutem:
uns preferem esperar pela morte, outros fariam já
o negócio.
ela era assim tão triste
ela era uma pessoa assim tão triste. sempre meio macambúzia, meio melancólica. queria ser alegre mas não conseguia. o que ela podia fazer? era errado, ela me perguntava, como que desabafando, ser assim?
quando alguma coisa a alegrava, ela dizia, como a curva da estrada margeando uma colina coberta de mata, o céu azul e o sol iluminando, enquanto algum blues com guitarra emanava do som do carro,
ou quando o tempo virava, o céu se fechando e o vento trazendo a chuva, e depois vindo o barulho da água tamborilando no telhado, eram, ela me dizia,
sensações de felicidade fugaz e leve o que ela sentia, tipo um sorriso de canto de boca, não (jamais) uma gargalhada.
gargalhada? ela só sabia rir, de maneira esfuziante, eu me lembro, da própria desgraça, ou, vá lá, das trapalhadas que de vez em quando ela fazia, ocasiões em que ríamos juntos, e das quais, apesar de tudo,
eu sinto falta.
as cores refletidas nos seus óculos escuros
às vezes, no mar, as cores ficavam
muito quentes, não é? pareciam fotos tiradas com
filtro, para dar o efeito de excesso, de granulação. como naquela
manhã, na baía de paraty: as cores do barco (branco,
vermelho, amarelo), do mar, do céu, da mata, da
costeira, do seu biquíni (amarelo e vermelho).
e tudo aquilo refletido nas lentes dos
seus óculos escuros. e o flap flap preguiçoso da
água batendo no casco do barco. e as suas costas douradas
queimando sob o sol. é, a cena toda ficava
mesmo com as cores estouradas, como nos nossos velhos
slides fotografados com fuji film. ah, me lembrei
deles, agora, enquanto falávamos: você por acaso sabe onde
foi parar a caixa com os slides? desde a
nossa última mudança, só agora é que eu me
dou conta, não a vejo. e olha que um dia, não
ria, aquilo vai voltar a ter valor, como aconteceu com
os discos de vinil.
* * *
André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo no longínquo ano de 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Há pouco tempo decidiu que já estava mais do que na hora de tirar seus poemas da gaveta e espalhá-los por aí.