ITINERÁRIO DO SOL
Lucas dos Passos
Lucas dos Passos (1989), natural de Vila Velha e radicado em Vitória, publicou poemas no portal Cronópios, na revista 7facese no caderno Pensar, de A Gazeta. Mestre em Letras pela Ufes (onde cursa o doutorado também em Letras), atua como professor de Latim e Literatura Brasileira no Ifes. Os poemas aqui apresentados são fruto de um ano (2013) em que o poeta se propôs a escrever um soneto por semana.
Uma coisa
Para Marcela
Uma coisa: sentiu-se a mesa então
tão completa, perplexa, mais surpresa:
tudo enleia uma boa prosa – veja:
o bom lábio põe quase tudo à mão.
Outra coisa: não sei, é claro, como
um artefato tão complexo quanto
a língua humana enfim se não irmana-
ria de quando em quando (e como come).
É lógico: o capricho sublunar
vai ziguezagueando quadra a quadra,
cambaleia e sobrevive às escadas;
mas, às expensas do que não se cala,
revela-se desperta, pois se enquadra
exatamente onde queria estar.
Incidental
Para o Ray
Seriam a poética e a política
fardo muito pesado a um só homem?
Comprova o estagirita: nunca foram,
por que seria a vida tão pudica?
Até quem cala já se identifica:
“en la lucha de clases...”, vá a pé.
Dois olhos, dois ouvidos, duas moedas,
e a vida, matemática, se arrisca:
é tão grande o fardo, tão curta a farda;
dorme lacrimogênea, já de molho,
a barba (ou cabeleira) comunista;
e quem vê coração só vê camisa.
Constrói-se a realidade em mil refolhos,
mas a paz interdita: é tudo ou nada.
Malone morre
Tudo algum dia vai estar bem morto.
E depois? Depois nada. O que veio antes –
se foi quarto de hospício ou de hospital,
centro espírita, igreja – não importa:
o tempo sempre esmaga tudo (dizem
os tolos que no fim ele até cura)
quando passa, imponente, pelas ruas
da memória, ou por concreta avenida;
o passado só volta demolido
como um monte de cacos empilhados
com um contorno algo inverossímil;
e a história recalcitra recalcada.
Vida e livro só deixam a falida
crônica de uma morte anunciada.
* * *
Sérgio Blank
Sérgio [Luiz] Blank nasceu em Vitória, ES, em 15 de abril de 1964.Publicou:Poesia: Estilo de ser assim, tampouco, edição alternativa promovida pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1984; Pus, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Editora Anima, 1987;Um, Cultural-ES, 1989;A tabela periódica, Secretaria de Produção e Difusão ultural/Ufes,1993;Vírgula (1996). Literatura para crianças: Safira, Departamento Estadual de Cultura, 1991.Tem textos avulsos publicados nas revistas Cuca, Letra, Você, e em outros periódicos.
APÓSTROFO SEGUIDO DE S
a minha letra — risco em silêncio
não é a de enxofre
nem consoante fricativa alveolar surda
não é santa ou santo ou são-salavá
a décima-oitava letra do alfabeto
a minha inicial — cronograma em sangue
dois segundos de poema
espírito escrito na cidade
que neon algum ilumina — ofusca em sono
a letra muda desta planta genealógica: cáspite
o esse — cascavel em catacrese
o nome em que me inscrevo no juízo de salomão
minha voz rubricada nestes versos — quatorze no todo
BARROCO NO BAR
sentado a bordo desta basílica alcoólica
faço baralho com todos à vista
ás a rei ao boreal ou ao sul
bebo a todos sem as hierarquias
se sou barão e ele é mais pois é visconde
ou o tal ali possa ser arquiduque
vão todos à merda e duque foi nome de cachorro
barbitúrico à mão de cor tão bordô
faça-me instrumento de sua paz
que a noite é feto e esperança é a última que falece
não é a de enxofre
nem consoante fricativa alveolar surda
não é santa ou santo ou são-salavá
a décima-oitava letra do alfabeto
a minha inicial — cronograma em sangue
dois segundos de poema
espírito escrito na cidade
que neon algum ilumina — ofusca em sono
a letra muda desta planta genealógica: cáspite
o esse — cascavel em catacrese
o nome em que me inscrevo no juízo de salomão
minha voz rubricada nestes versos — quatorze no todo
faço baralho com todos à vista
ás a rei ao boreal ou ao sul
bebo a todos sem as hierarquias
se sou barão e ele é mais pois é visconde
ou o tal ali possa ser arquiduque
vão todos à merda e duque foi nome de cachorro
barbitúrico à mão de cor tão bordô
faça-me instrumento de sua paz
que a noite é feto e esperança é a última que falece
* * *
Casé Lontra Marques
Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Publicou os livros: Movo as mãos queimadas sob a água (2011); Saber o sol do esquecimento (2010); A densidade do céu sobre a demolição (2009); Campo de ampliação (2009); Mares inacabados (2008).
Por que estas palavras atiradas à superfície da fala?
uma
ave — talvez água — ávida:
concedemos à sonolência
dos
seres
de sono escasso
o rumor
de uma memória em que
o medo,
a areia, o êxtase,
a sede,
o palco compõem
a ponte
para
outro
descompasso. O texto
do
encontro. Inventa
o retorno,
o avanço. O rastro: vigio
ao redor do mutilado, tateando
por
entre a poeira; narro
— quando
não
nos ouço — o necessário
sobre
seu passado. Corrijo:
sua voz — seu corpo, híbrido —
inventa
o relato,
o fôlego: esmaga, com
as mãos
retesadas, o espaço
que
repousa
nos joelhos,
o espaço
despejado
pelo dia que o silencia,
pela
noite
que o cega, o espaço
resignado a qualquer
ausência,
a qualquer
afago, resignado porque
não se quer
derrotado (apesar de combalido),
nem
interrogado
(apesar
de
compulsivo),
reconfigurando — depois
de aliciar
o aleatório, depois
de
elucidar o latente —
o espaço: para
o parto; o espaço: para a paralisia;
o espaço:
para restaurar — ruidosamente restaurar —
a saliva,
o bulbo, a cica, o sopro que
forma
o fogo; o espaço:
para
apascentar
a apatia;
o espaço: de uma língua
de
alumínio: o espaço:
de um crânio
de
cobre:
o espaço: como um trinco
na
traqueia: o espaço: como
uma teia
de
válvulas
nas
veias,
como uma teia (uma trama
não
de atalhos,
de trincheiras) que
estende
o
circuito
(pelo
signo) de novo
nítrico
do sangue
*
* *
Porque no momento em que me recolhe
sou somente
um ruído que aprende a respirar
sob seus órgãos;
uma forma — violenta — de incandescência:
como
a condensar as idades
das áreas mais claras
da casa
onde
recebemos a extensão da nossa
insuficiência? Espalho as frutas
pelo assoalho
das horas futuras — o que não significa
que suas alas (voltadas para a água)
sejam
únicas: os cães que retornam, calmamente,
formam uma memória
úmida. Por
entre mapas, — reagindo, — ultrapassa
a impaciência: a lenta
permanência
da impaciência cuja ossatura
excede a fala:
em torno
da
xícara vazia — enquanto
a face
— súbita — vibra:
os objetos que prolongam o corpo,
as letras
que povoam
a página, os segundos
que precedem
o sono
revivem, indefinindo-nos,
o risco
de um riso nítido.
*
* *
Atravessados por ventos de repente
rarefeitos, lapsos
sísmicos tateiam a inútil
instabilidade
da desintegração: este estímulo
à estima — entre
frequentes fraturas — tantas vezes
articula
uma viva falha: (mesmo
suspeito
ao falso): não
raro respira, como
outros
espelhos, no rastro
dos restos
mal nomeados
*
* *
Passa outra noite pelos pontos onde
tombaríamos
com a cabeça despejada
sobre a nuca,
num
exercício
que desenvolveríamos próximos
do apuro
de uma pétala
decepada;
nossa noite — aquela que
conhecemos,
apesar do que
ainda
não tateamos;
aquela
que esquecemos,
apesar dos fatos
que
fundamos — nos inunda
até
a cintura: é uma noite
imóvel,
instalada
contra a imensa
água
que nos arremessa
a uma
nova
voragem. Movendo a língua
pela cavidade
da boca, brinco
com a areia
que não quero
na garganta. Mas não repudio
a destruição
nem
o desespero — cultivo,
mesmo
que atordoado,
o desprazer — não o desprezo: diante
da voracidade,
penso
nos órgãos
retalhados; penso —
distante
de estar exausto —
nos ossos
assolados
por
uma fácil
insolação. Destino
ao
pensamento o risco
de um nascimento
físico — consolidando
— nos gestos
do corpo — uma pulsação
de acesso
tanto à sutileza
quanto
ao excesso. Quando
descritos
como legião, iniciamos
outro ciclo
de desabrigos: nossa
imagem
desliza — inutilizando,
desse modo,
a comparação — por resíduos
que não conduzem
nem
ao conflito
nem
à exclusão. Sua subsistência
não deslumbra,
da mesma forma
que
a fome (a fome
que inaugura
uma nova
fúria,
uma
fúria alerta)
não deslumbra —
mas
consome
os coágulos
que
apodreceriam
(calcinados
pelo
cansaço)
no
interior
dos passos, antes
que se fundisse — com
os metais
da
desolação — o organismo
a ser
oferecido aos rios
que
a fuligem
acomoda
no
meio de
outros
desperdícios.
*
* *
De qualquer forma, estas pedras não suportariam tanto tempo
em contato com olhares nada
cardeais; certa metáfora, planando, abriu uma fresta
no céu da desorientação, depois
desapareceu através da vidraça ainda
precária. Quando o lábio incha como uma imagem
infeccionada, desconfio
dos dentes mas — sobretudo — daquela palavra
mais uma vez reinventada. A construção da manhã
continua tão sólida quanto
um trauma. Da direção da cidade, em meio
a muita brita, vem uma claridade que o poema,
podendo conseguir, não saberá evitar. A construção
da manhã segue tão versátil
quanto uma vertigem. Tentarei
falar antes que o silêncio desloque outra breve vértebra.
REFLEXÃO DO PAJÉ
Estrangeiros em nossa própria terra,
sonhamos uma terra fabulosa,
um mundo legendário,
e vagamos sem rumo nesta busca
do mítico país da venturança,
hebreus em eterna travessia
de um mar vermelho de sangue e vergonha,
ponte entre o precário e o supino
− via que nos leva ao divino.
Pobres almas iludidas,
mirrando em transe errático
neste vasto território, à procura
de outra terra nesta terra,
de outro mundo neste mundo
e outra vida nesta vida.
Em busca de outra terra
jamais encontrada,
quantos índios pereceram!
E quantos pobres diabos
ainda zanzam nestas belas plagas,
iludidos por um cruel engodo,
esfíngico mistério,
enigma simbólico, poético
– enfeitiçados por belas metáforas!
Terra sem mal, que tanto almejamos,
mirífico país, sonho que aflige
as nossas almas mais que o pesadelo,
onde te encontraremos?
&&&
LIÇÕES DE TUPI-GUARANI – III
KOÃ, KUÃ – cintura
KOÁ, KUÁ – cintura, quadril, anca, meio, centro do corpo
KOÁ, KUÁ, KOARA, KUARA – furo, orifício, buraco, gruta
KÕY – duplo, gêmeos, unidos
KUÃY – preceito, mandamento, ordem
KOÕ – pungir, queimar, irritar, arder
KÕÕY – ofender, injuriar, desagradar
LIÇÕES DE TUPI-GUARANI – IV
KU – língua
KUÁ – porto, baía; quadril, anca, meio; orifício, buraco
AKU – quente, tépido, cálido
KUABA – saber, conhecer
KUAKUBA – esconder, ocultar
KUAPABA – sabedoria, conhecimento, ciência; sinal, marca
KUAKUPABA – esconderijo, refúgio
KUAPARA – sabedor, estudado, cientista, erudito
KUAKUPARA – escondedor, ocultador
* * *
Jorge Elias Neto (1964) é médico, pesquisador, cronista e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010), Os ossos da baleia (Prêmio SECULT - ES – 2013). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espírito-santense de letras – 2010,2011,2012,2013) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afinsm Mallarmargens e no Portal Literário Cronópios. Membro da Academia Espírito-santense de Letras onde ocupa a cadeira de número 2. Blog. Email.