E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
nenhum homem decifrará a cifra da escritura atéia
– yscaulom locutópilum polipilitápelo –
lavrada em mármore egípcio, a ípsilon aspado.
Prenúncio de manadas taurinas
estourando sobre nós,
esmagando as harpas
ao tórax disto que ao sol
se chama corpo, deixando em pó
algo que já foi ímpar,
em par, algo que já foi só, em paz, algo que já foi pós,
em pus, algo que decompôs... e póstumos;
a postos esperamos pela fênix que se fará de nós,
e pelos faróis que decifrarão a nós, e pelos faraós
que falarão de nós e se farão de nós pássaros de luz,
e cifrarão em nós, lundus, rondós, lindos cânticos de Davi
e um bolero de Bach que não ouvi mas o vi no baque
surdo do batuque errante
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
ressuscitarás entre solos de cítara, e citarás os cantos
de Pound na conferência dos espíritos noturnos.
Nenhum anjo lerá a partitura desta ópera canônica,
desta peça inconsútil
(sutil como o ~ no a da inútil palavra, João)
preenchendo o infinito.
Bendito seja isto e tudo o que eu estudo sobre isto,
ao astro em que eu ministro o instrumento do poeta:
o livro e a palavra, a leitura e a escrita, a labuta, a química
que me cala quando escrevo,
e disto eu sou escravo!
O cravo que me prego
quando Cristo eu me descrevo,
o trecho em que me travo
no poema semi-escrito,
o grito do abstrato
no soneto ultra-concreto,
o credo do preciso
na impureza dos meus atos.
(Athos e Aramis
em arames farpados)
Eis aqui os meus atos:
inquietos defensores
de ofendidas damas,
de fodidas damas difundidas,
fundeadas em camas
de camaleões embalsamados,
de leões ruivojubados
e, obtusos homens,
cujos nomes trago
ao fio executor de minha lira,
e os corpos ao porão
de Le Bateau Ivre
encalhado em meu rio.
Rio de mim mesmo, mesmo me sabendo marinheiro,
o que singra essas águas, o que ruma vagas milhas,
o que sangra as nossas mágoas,
o que empunha a armorial cantiga
e, embainha a majestosa espada,
o que aspa as dez feridas desferidas à palavra, o que
crava, o que livra, o que libra, o livre lavra o epitáfio
ao frio insuportável desta lápide: a que lá, pedi
aos deuses para que descanse o teu soneto sonolento,
o teu soneto lentamente inacabado.
Rio de mim mesmo, mesmo me sabendo marinheiro,
talvez por à deriva à proa de Le Bateau Ivre,
vagar em águas polutas em busca de letras submersas.
E soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
postulas-me o poeta
que o enfrentará na escritura?
Para traspassá-lo com um punhal de ouro,
e arrancá-lo o coração,
e depurá-lo, e apurá-lo
num sarcófago de fogo,
para a ressurreição dos infiéis?
Eis aqui, João! A palavra cujo ~ a deixa mais
inútil, se sutil não cobre a laje curva de seu a.
E tu, quem és, oh apóstolo?
Aposto que tolo tu serás
e nada és, apenas assombras
o umbral salubre do poema,
sujas a imagem das vogais
que em voga não o divulgam,
crespas a aspa da palavra
que o lavra em pedra-ume,
pastas com as cabras entre cobras
e assombrosos vaga-lumes,
vagas entre o lume intermitente
de asteriscos cintilantes,
uivas sob as ruivas cabeleiras
de austeras alvoradas,
usas contra mim a ira vã da tua espada,
afias em meu corpo
o fio do áurico punhal,
e culpas outro punho
quando a isto me exponho.
E aí caro demônio, eu te domino e canto o madrigal,
e campônio, não semeio
o que em ti eu dissemino,
nem divido meio a meio
com os mendigos no natal,
o trigo e o centeio, – a intriga – o devaneio episcopal,
a epístola profana e o fanatismo da pistola,
a pústula esmola, e a postura que a esmo urde o mal.
E soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
– tumor, ou tu, mor? –
só uma dúvida separa-me
do teu rosto, de resto...
eis o significado do
estupendo hieróglifo,
em cada símbolo deste livro, em cada címbalo da orquestra
que nos embala, e nos orquestra a castração do teu espírito.
Espalharei os teus signos por todos os pontos dessa página,
e ilustrarás novas escrituras, aos pés das esculturas escrotais
à galeria dos mitos, e admitirás
estar cansado de mentir,
e irás sem ira a cada mente
admitir que és outro,
e em outubro querer-me-ás
o voto, – e eu te darei
o veto, – não sou devoto dos teus atos ateus,
nem dos teus retratos ao mural do coliseu, nem da amora
que dás ao amor a mor exatidão das horas, nem do caos
em que te tornas ao mais mínguo dos domingos, nem
dos grãos que dás aos pombos aos escombros da aurora,
nem da hora em que oras,
nem da era em que foras
de Hera, e convenceste Ares
a destruir a grande Tróia.
Quem crê em ti, mesmo
sendo tu um Ente sedutor? O povo
te espera lá fora para atirar-te pétalas ou para lapidar-te!
Convence-o, mostra que és outro; e no outubro vindouro
jubila-te, coroa-te com o louro dessa gente a ti oferecido
de bom grado, ou morre triste com uma flor entre os dentes.
(Cravo de um poema tosco espetacularmente inacabado!)
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
a flecha passa e eu a ouço
é de aço e osso a flauta... o anúncio...
a hora de orares, de leres Max,
de leres Moura, de ouvires Walter, de veres PP:
e ires à íris de Faustino
colher Amarílis nas encostas andinas, para dispô-las
ao túmulo da tua mais amada,
e replantá-las em vasos de ouro
à luz da obstinada aurora.
O teu julgamento a meu ver tingirá o tribunal,
e será total a tua sentença e intensa a tua dança
aos incensários shivais, bordados à toga antiga,
rés a pança meritíssima do juizíssimo final.
Afinal, a tua absolvição ab-reptícia condenar-te-á
quando atirares répteis à promotoria, que indefesa
os engolirá e vomitará rancores sobre a mesa,
e dirás ser isto a sobremesa do impecável júri:
pagarás com juros a tal injúria, Amon não te
mostrará as portas de rubi desta masmorra,
nem fenderá a textura dessas pedras, para que vejas
Ítaca destacando-se no horizonte, e te masturbes
ao olhares Penélope rejeitando-te mil vezes. Mil
vozes cantarão nas noites seculares dos teus dias. Mil
línguas falarão nos dias infindáveis das tuas noites.
Mil vezes negarás a tua culpa
à cúpula do rol que repudias:
e ouvirás rapsódias, – odeias odes! – e contarás episódios,
e pintarás zodíacos em cada um dos teus besouros,
– escaravelhos incrustados à cruz da tua medalha –
monstros em esterco de centauro adubando o infinito,
carnívoros como a borboleta letal e a meta dessas letras.
(prenda de Hefesto
defecando astros sobre o tempo
em que cumprirás
a risca a tua sentença)
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
outra era instaurar-se-á
à era taurina, e austera será esta
em que seremos outros, e enriqueceremos,
e cresceremos irrequietos,
e quais brutos impedirão isto?
E quais antros negar-nos-ão suntuosos aposentos?
E quais centros margearão
nossos espíritos, excluindo-os deste encanto?
Viverás nesta cela de
agudíssimo silêncio, e
vaga-lumes carnívoros
devorarão teu cérebro,
e te doarás a isto com fervor, e comerás
cogumelos de sangue,
e um conglomerado
de estrelas infelizes
sairão em tuas fezes,
e tornar-se-ão vermes,
e te roerão o fêmur,
– O caranguejo o espera com seu beijo! –
e mancarás neste cubículo obscuro por séculos e séculos,
sem que ninguém saiba da tua dor neste cárcere vernáculo,
sem que ninguém ouça o teu gemido neste recôndito infernal.
Dorme, oh pústula apóstolo,
não sejas tolo em apostar comigo,
estou forte feito besouro,
e tenho Éolo ao meu lado,
uma lança de ouro, e uma harpa
cujas cordas eu as fiz
com os cabelos de Penélope,
e ao tangê-las, caem letras sobre os homens e os pune,
deixando-os crivados de As, entre esporas de Zes.
O que dizes: ouvirás então o som deste instrumento;
ou virás a desistir da aposta, apóstolo? Aposto que sim,
mesmo que leias Cecim, – é necessário ler Cecim,
como é necessário ler-se assim, como é necessário dar-se
a Circe para se tornar cavalo,
e atingir o universo com um
coice esplendorosamente ácido,
e abalá-lo, e pô-lo abaixo num
dia tempestuoso em que todos os astros nos condenem –
não te livrarás da perfumada
angústia desta harpa,
nem de sua música-navalha
a filetar-te em silêncio; só sentirás
a dor da tua amada em posse dos centauros, e não farás
nada, a não ser chutar os ratos a roerem-te a mortalha.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
teus olhos se derreterão
ao sol da Grécia, após
a impenetrável escuridão
desta masmorra: e serás
homeMMulher – Tirésias
há de te levar a isto, e FlorLírio, beberás o néctar
da rosa olímpica, comerás o pólen da rosa olímpica, e levarás
o sal da deusa à ponta bifurcada da tua língua, e já serpente,
Ijah, a mor sacerdotisa de Morsa, removerá o teu remorso
e o entregará a Morso – o rei de Morsa – que o arremessará
ao espaço, onde os teus ex-passos descansam
à sombra oca do universo:
e vomitarás os pássaros sagrados
que tornar-se-ão astros,
as crianças de Tebas
que tornar-se-ão libélulas,
o cavalo de Aquiles
que tornar-se-á relâmpago,
as harpias de Ares
que tornar-se-ão bromélias,
as virgens de Creta
que tornar-se-ão cegonhas,
e por fim o HomemTouro
que tornar-se-á profeta.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
as tuas vísceras se espalharão
em Campos Elíseos,
e nascerão cogumelos dramáticos
de melodiosos grãos
em teu dejeto depurado,
e deles te alimentarás,
e sentirás o gosto da arte,
– o sal da deusa à ponta
bifurcada da tua língua –
o sabor deste poema e,
da carne que o envolve,
devorarás com fervor cada símbolo desta página,
(Pégaso pastando ao céu mastigou mais uma estrela!)
e artívoro, vagarás de alfa a ômega degustando letras,
e amarás este campo de is que
o alimenta, e amarás a quem
o ara e nele lavra amaras letras,
e seguirás pelo espaço os passos dúbios do poeta.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
erguerás ao cume do Olimpo um grande templo,
onde deusas sanguinárias levarão clemência às virgens
imoladas, e abecedários mornos à tua fome,
mastigarás de a à z árias inteiras, e não te engasgarás
com y enforquilhado,
nem com k marcha-soldado,
nem com x encruzilhado,
nem com w entrelaçado,
nem com o ~ que cobre o a
da inútil palavra, João. Comerás isto,
qual a serpente de Zeus a ratazana de Caronte, e farto,
vomitarás outras linguagens à mercê dos Três Sertões,
e avistarás Quinan, e falarás a língua das águas, e falarás
a língua das pedras, o idioma do fogo e o dialeto do caos,
e cáustico serás liberto num domingo soturno em que só tu
saberás de suas horas o tempo, e terás a eternidade para
forjares a poesia à forja fria de Hefesto:
e festejarás a isto com um
estupendo manifesto, em que desposarás
as putas de Ameron ao meio-dia.
E Soronopolos apóstolo em seu túmulo nulo
A flecha passa e eu a ouço
é de aço e osso a flauta... o anúncio...
– zune agudo o som da flauta
e agonia o mundo, algo unia o mundo a esta música? –
a hora de ocultares o alvo ou movê-lo (Aquiles couraçou
os calcanhares, e Jalva a doce alvura dos seus seios)
para confundir o aço. E então apóstolo? Estás a postos?
Assumirás o posto que postulas
há séculos? Disposto a expor-se
à perícia do fabuloso arqueiro e fazê-lo errar? Ou errarás
tu por estas páginas; obstinadamente etéreo, como
a flecha que nos caça no infinito?
Curadoria: José Inácio Vieira de Melo
Ilustrações: Dariusz Klimczak
João Batista Gomes Filho – Joãozinho Gomes – poeta, nascido em 20 de outubro de 1957, na cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Em 1975 conheceu o compositor Lôbel, que viria a ser o seu primeiro parceiro musical. Em 2009, em parceria com o cantor-compositor Enrico Di Miceli, gravou o cd Amazônica Elegância, fruto de um projeto aprovado pela Funart, dentro do Projeto Pixinguinha de editoração. Além do cd Tambores do meio do Mundo, este gravado com o Grupo Senzalas. Com dois livros inéditos e um repertório com aproximadamente mil canções, Joãozinho Gomes está entre os mais férteis poetas brasileiros. Tem parcerias e gravações com Nilson Chaves, Juraildes da Cruz, Cláudio Nucci, Ceumar, Jane Duboc, Enrico Di Miceli, Celso Viáfora, Chico César, Vicente Barreto, Leci Brandão, Vânia Bastos, Moska, Geraldo Azevedo, Renato Braz, Leila Pinheiro, Selma Reis, Dominguinhos, Patricia Bastos, Zeca Baleiro, Olga Savary, Antônio Moura, João de Jesus Paes Loureiro, Eliakin Rufino, Luiz Carlos Sá, Vitor Ramil, Flávio Venturini, Dante Ozzetti, dentre vários outros. O poemas selecionado é do livro “A Flecha Passa e poema diversos” (Selo Ildefonso Guimarães de Literatura,2013) .