hoje quero amanhecer com os afogados
implorar que voltem a caminhar comigo
penteá-los como se evocasse filhos
abraçá-los como quem pede um chamado
hoje à tarde vou morrer com os afogados
engolir a água que invadiu suas sebes
me arder no sal que arranhou suas malhas
e arranhar as minhas com o que partiu suas pedras
hoje à noite vou salvar-me entre afogados
ler em seus olhos alguma paz em riste
embora nas pupilas ouça ainda
uma voz rouca, para sempre dilatada
amanhã estaremos todos acordados
em mar profundo poderemos ser crustáceos
cavaremos até chegar ao mais escuro
ninho de pérolas e tudo será claro
para amanhã iluminar outro afogado
que na voragem de salvar-nos será salvo
e se unirá ao nosso fio interminável
de corpos sob o pôr/nascer-do-sol
e amanhã saberemos de que é feita
esta linha vista ao longe:
de um pouco de água e muito de nada
lavando por dentro o peito dos mortos
inpor uma gênese do horizonte (2006)
Tradução
Dizer das paredes: rígidas
como os corpos que não cessam
deserrá-las,
mas não cessam de
erguê-las
pois o tempo é uma morada
quase intacta –
ora se desmonta,
ora está refeita.
Dizer das paredes: pálidas
como as noites ontem brancas,
pouco a pouco desbotadas,
quase iguais ao mobiliário,
aos motivos, aos retratos,
pois o tempo é uma tintura
que se gasta:
outra em que se invista
será só máscara.
Dizer das paredes: úmidas
como as páginas pelo rosto –
sobre a linha encanações
perfuradas,
infiltrações nos tijolos
das palavras,
pois o tempo
é uma espécie de rascunho
do que amanhã foge ao punho.
Dizer das paredes: versos
como as vigas que dão força
à estrutura, como cercas
que protegem nossa sala,
arquitetam nossas portas
e se soltam, como cal,
rumo aos quartos do sensível.
Pois o tempo se constrói
de cimento. E de invisível.
Dizer das paredes: nós
como os pronomes pessoais
do caso incerto,
conjugados na labuta
da existência, pois o tempo,
mais que sólido, é ausência,
e por isso nos tramamos
rígidos, pálidos, úmidos, versos:
para preencher
nossos últimos restos.
inSete mil tijolos e uma parede inacabada(2004)
romântico
sem repetir a mesma lenga-lenga
de sempre: “até que a morte nos separe”
ou “acho que encontrei minh’alma gêmea”
e qualquer outro papo assim, melado
que faz diabético o mais gordo poema
sem engolir o leite derramado
quando, à francesa, o amor disfarça e vai
embora, eu avisei: não faça tratos
com estranhos, sentimentos que nos traem
nas horas em que a gente arrisca planos
em vão e vem o pranto, um ai-ai-ai
curta seu love, tire uma casquinha
amar é sair junto, ao cine e após
tomar um ice cream numa pracinha
e nele derreter-se, ao sol, e a sós
lembrar: fugaz também a “rapidinha”
forjada à noite, num motel de quinta
onde, depois do orgasmo, o nojo, o podre
nos corpos que se afastam, se reviram
cada um para o seu lado, ufa, acabou-se:
“melhor pedir a conta, amor, se vista!”
inzero ponto zero (2010)
Igor Fagundes é poeta, ator, jornalista, ensaísta e professor. Doutor em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor de Filosofia e Estética nos cursos de Graduação em Dança da UFRJ. Escreveu crítica para o Jornal do Brasil, Rascunho, Panorama da Palavra e em periódicos de arte, filosofia e literatura. Foi colaborador da Academia Brasileira de Letras. Publicou em poesiaTransversais(Prêmio Estudantes do Brasil, 2000), Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004), por uma gênese do horizonte (Prêmio Literário Livraria Asabeça, 2006) e zero ponto zero (2010). No gênero ensaio, publicou Os poetas estão vivos – pensamento poético e poesia brasileira no século XXI (Prêmio Literário Cidade de Manaus, 2008 – Melhor Livro de Ensaio de Literatura), 33 motivos para um crítico amar a poesia hoje (2011) e permanecer silêncio– Manuel Antônio de Castro e o humano como obra (2011). É organizador de outros quatro livros e coautor de mais de 30. Possui cerca de 60 premiações em concursos literários. Membro do PEN Clube do Brasil. No ano 2015, publica Poética na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu.