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6 poemas de Marcus Groza

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Afia-se





não merece amor quem vive em si
sem esfolar a ponta das vértebras
não merece amor quem os nervos não esfrega
em mel em cinzas
e no zinabre de fagulhas e salivas
arrastando a língua nas flechas
conta postes paredes e pedras
não merece amor quem vive em si
esquálido como um cristo que não pesca
como um cachorro que tem dor de barriga
e flores e gramíneas não mastiga
nem faz compressa
não merece amor quem vive em si
sem esfolar a ponta das vértebras



Sem título

usar a palavra
mesmo sabendo
que feita
qual pele
para ocultar
e encobrir

com a palavra
poder aos poucos
transvestir
atrás da nudez
dos nomes

ousar a palavra



Emulsão precária





sonhei que desenhava
urucum no seu corpo com
pus a lua e a águia
um centímetro fora
foi sorte
agora
vou montar sem pressa uma casa
feita só com madeiras que tombam
a cada chuva
até ficar pronta vim morar com você
dentro dos pingos da chuva
aqui esperar
que você renasça
líquido na parede
infiltrada você
água corrente
mas
quem de longe me vê
pensa:
Esse é muitas aranhas!
emulsão precária
promete
ser permanentemente
um gato
Esse são muitas aranhas!
um pequeno bando de aranhas
decidiu se juntar num gato
foi o que sonhou meu irmão
três gatos de aranha
mas se misturarmos
óleo você
num copo
d'água
e de mim
pode demorar mas a poluição vem à tona
de um lado a silueta vazia
do gato

do outro as aranhas



Salmo

o mal é preciso temperar não rejeitá-lo
temperar o mal sem ter que afastar a taça
também não bebê-lo puro de um só trago
veneno duro de comer com garfo e faca
fica dias na salmoura para sair o amargo
o mal é preciso temperar não rejeitá-lo



Refeição no exílio

se eu disser que a insônia anula as estrelas
mesmo com o céu limpo
e com todas as luzes do quintal apagadas
você vai entender o que digo?

insônia é outro nome
para a data de validade vencida
dos mantimentos na dispensa dos meus amigos
que vasculho quando me proponho a cozinhar para eles

o vinho não tem validade
faço uma sangria de vinho gengibre e frutas podres
um brinde
ao que não entendo
um brinde
ao que não se define
um brinde

a bandeira do meu país
é um rosto desfigurado
quando se faz possível um sorriso
é dia de cantar o hino e hastear a bandeira
o hino conta sobre a invenção da noite
diz que um velho piedoso de tempos antigos
roubou a noite e nos deu de presente
diz que a noite é o estado natural dos seres
que a noite é uma tempestade de areia
a desmentir o argumento dos rochedos

se eu disser que ao fazer o jantar
engoli um eclipse
e palitei os dentes com a vontade que sinto de vê-la
você vai entender o que digo?



Caruncho nas tábuas

Não ande de maneira convulsiva
Não materialize as coisas apontando-as com o dedo
Não vá até à praia só pra ver se as ondas dormem
Não tente argumentar que o medo é uma arma de destruição em massa
Não passe noites em claro reescrevendo os velhos malditos poemas
Não presentifique Deus fitando longamente coisas jogadas no chão
Não fume os farelos que sobram no fundo dos bolsos
Não diga que não deve haver clemência com a vítima que internalizou o feitor
Não chame de poda o que outros chamam de devastação





Marcus Groza é palavrero e devoto do céu violado. Autor dos livros “Do Buraco à Poça” (Ed. Patuá – 2013) e “Sossego Abutre” (Ed. Patuá – 2015). Atualmente, é co-editor da Revista Abate e da Revista Saúva e doutorando em Artes Cênicas (Unirio)

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