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"O desmonte da ave" poema de Alexandre Arbex Valadares

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fotografia | Dara Scully






desta vez será a limpo, senhores,
sem mister de sangue ou entorse,
como se cócegas em vez de dores
e fosse preciso menos que a força

de dois malmequeres de flores;
será a sério, se quiserdes, claro,
porém sem demasiados rigores;
por lazer, mas a frio – tão raro

dispor assim de um animal vivo,
poder apreciar sua sutil máquina!
vede de início seus pés esquivos,
que plantam no chão as trincas
                                
de dedos e suas unhas de anzol:
quebrá-los não pede manobras
de alicate, nem alheio arsenal;
será bastante forçar as dobras,

envergar as juntas até o estalo,
repetir a operação dedo a dedo,
até restar o talo: a menor demora
daria, a esse ato, ares de tortura,

e nosso método propõe uma arte.
talvez o seco estopim da fratura
evoque, a quem perto escutá-lo,
um clique de graveto que se parte. 

como ficarão tão miúdas sobras
dessas incisões, é desnecessário
espanejar a fina poeira da obra
que sobrerrestar no assoalho.

subamos logo ao tarso, joelho,
e tíbia, o delicado mecanismo  
que põe a mover dos bípedes
a esbelta anatomia; um estilete

há de cortar prestes o aparelho,
tão útil aos passeios terrestres,
em duas ripas a partir do meio:
o tarso, cujo talhe se assemelha

a uma estreita canela; e a tíbia,
em oblíqua, transversa posição,
presa à coxa por frágeis fibras,
donde podeis desatá-la à mão,

com um movimento de arranco;
este, se feito a contento, fará a ave
apoiar-se num dos seus flancos,
para não tombar ao próprio peso.   

sacrificá-la? não, senhores, é cedo,
uma ave sem pernas, acomodada,
passa por ser um animal inteiro,
com membros sob o abdômen:

e, se acaso lhe conferem impulso,
não admira que voe; mas o pouso,
sem amparo de pés nem o seguro
aterrar das unhas em uma pedra,

não será, nos estertores da fadiga, 
mais que simples e natural queda.
para poupá-la a tão imérita sorte,
cumpre que o desmonte prossiga:

ocupemo-nos ora de suas asas,
mas sem extirpá-las de golpe,
como faria o vulgar açougueiro,
cujo ofício fez cego à beleza.

seria desumano, com efeito,
depená-la sem justa homenagem
à variada constelação de penas
que reveste tão leve engrenagem:
  
nas pontas, as rémiges primárias
ostentam uma longa plumagem,
e sua cor dita, sendo a mais densa,
o grau dos outros tons da paleta

que tinge a textura do conjunto;
sobre elas, uma fileira se assenta
das rémiges ditas “secundárias”,
justapondo as geminadas abas

em contraste com o matiz fundo
das penas que lhe fazem moldura;
cuidemos dessa primeira camada
esgarçando fio a fio sua costura.

não vos iludais se a ave, dócil
a enfrentar o rigor do suplício,
parecer-vos inerte a esta altura:
também o animal sabe simular.  

nesse caso, para se tirar prova,
basta sacar as penas aos pares,
até ouvi-la, num arrepio, piar.
mas a hora urge: findo o recreio, 

vamos ao renque das escapulares.
são as penas principais da caça,
e, para erradica-las, será preciso
rasgar as cartilagens e os nervos

que operam a dobradiça das asas.   
ao fender seus rijos filamentos,
não deveis empregar machado
ou outros trucidantes meios: 

procederemos por laceração,
raspando em lascas a pele rubra,
até poder sem dano espedaçar
as asas como se fossem folhas

de papel, cortiça ou verdura.
se seguistes fiéis esse método,
agora tereis defronte uma ave
com a jocosa figura de barco:

sem pernas para se pôr altiva,
sem asas à guisa de bengalas,
balança ela, exaltada, à deriva,
com receio brusco de desabar;

seria justo abreviar tal agonia,
mas ao imperativo da técnica
repugna a solução fácil da faca.
adotar-se-á, pois, outro alvitre:

retendo nos dedos o pescoço
do pássaro, e o ventre bojudo
esmagando contra uma placa
até se esfarelar sua ossatura,

forcemos, insensíveis ao choro,
o encontro de cabeça e cloaca.   
agora resta pouco, o esboroado
peito que inda arfa, a garganta,

o bico por onde ela inda canta.
a este, afinal, nos apliquemos,
desatarraxando-o giro a giro,
até fazê-lo despegar da cara:

oxalá não seja preciso navalha
para romper dos tecidos o nó:
se, bem extraído, restar ileso,
o bico fará as vezes de adaga

e vazará da ave as vãs pupilas.
ao fim e ao cabo, restará tão-só
uma massa morna, exasperada;
sua forma não será de proveito,

e a carne inspirará inapetência.
mas o desmonte se consumou,
e é indiferente que, do espólio,
se faça fogo ou esquecimento.










 Alexandre Arbex Valadares nasceu em 1980 
 em Resende-RJ. Publicou, em 2001, o livro
 infantil O livro, pela editora Casa da Palavra. 
 Mora em Brasília. 

Contatos: alexarbex@gmail.com | Facebook

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