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Terra sem mal II - Waldo Motta

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Imagem: Ricardo de Melo




MAR DE TANTO SANGUE E FEL


Mar de tanto sangue e fel,
mar amaro, mar cruel,
onde hemos de encontrar
a terra de leite e mel?

Quanto mais os ventos falam
da misteriosa terra,
tanto mais a alma errante
em procurá-la, erra.

Quanto mais perambulamos,
de léu em léu, pela terra,
atrás da terra sem mal,
tanto mais longe iremos
de nosso destino real.



RELENDO GÂNDAVO


Lugar de infinito peixe
e de infinita caça
de que são mui abastados
seus felizes moradores.

A mais fértil capitania,
a que é melhor provida
de todos os mantimentos
que a boa terra dá.

Seguindo-se para o sul,
sessenta léguas distante
do porto onde chegamos
a esta terra brasilis,

eis Maracajaguaçu,
sítio do Jaguar Azul,
domínio de Yanderu,
reino do Babapiru.

Ai, terra de brucutus,
aqui será o fla-flu
o lugar do rendez-vous
entre Cristo e Belzebu.

Acutipuru
murucututu 
ducucu





TATANTY UÁ RETÉ II


Alta labareda
do fogo sagrado
- o fogo do corpo

Brava labareda
amorosa flama
inflamada fé
rubra esperança

Leda labareda
fogo encarnado
encantado lábaro
flâmula divina.

Guardiã da chama
do insone sonho
que a todos clama
e conclama à busca
da Terra Sem Mal.

Senhora do fogo
guardiã da luz
da ciência prima
dos primeiros pais
e primevos deuses.

Senhora fiel
do povo sagrado
ao longo da costa
do imenso país
conduziu Tatanty
o povo sofrido.

E logo no meio
da orla atlântica
- terra mui humilde
lugar tão bonito
ao qual deu seu nome
o Espírito Santo -
estacou Tatanty
e disse: é aqui!


Imagem: Ricardo de Melo


  
REFLEXÃO DO PAJÉ


Estrangeiros em nossa própria terra,
sonhamos uma terra fabulosa,
um mundo legendário,
e vagamos sem rumo nesta busca
do mítico país da venturança,
hebreus em eterna travessia
de um mar vermelho de sangue e vergonha,
ponte entre o precário e o supino
− via que nos leva ao divino.

Pobres almas iludidas,
mirrando em transe errático
neste vasto território, à procura
de outra terra nesta terra,
de outro mundo neste mundo
e outra vida nesta vida.

Em busca de outra terra
jamais encontrada,
quantos índios pereceram!
E quantos pobres diabos
ainda zanzam nestas belas plagas,
iludidos por um cruel engodo,
esfíngico mistério,
enigma simbólico, poético
– enfeitiçados por belas metáforas!

Terra sem mal, que tanto almejamos,
mirífico país, sonho que aflige
as nossas almas mais que o pesadelo,
onde te encontraremos?



INVOCAÇÃO DE TUPÃ


Nosso Pai Tupã:
Deus do sol, do fogo,
do trovão, do raio,
da chuva, da tempestade,
da justiça, do amor.
Pai dos seres viventes,
nas montanhas do poente
fizeste tua morada,
e reinas sobre as correntes.

Em meio aos tantos cumes
que abundam no ocidente,
ó Senhor de tantos nomes,
onde te encontraremos?

Gorak, Rudá, Sumé,
não desprezeis nossa fé.

Onipotente Tupã,
socorrei vosso xamã.
Yanderu, eu vos suplico,
cessai o nosso suplício;
por favor, dizei-nos logo,
dizei-nos, ó grande Pai,
onde se encontra, afinal,
essa terra que anelamos,
a nossa sonhada terra,
a nossa Terra sem mal?

Espírito dos báratros
e píncaros;
essência dos quintos
e vales;
hálito do abismo,
sopro celestino,
vento, aflato,

brisa, alento,
orvalho alquímico;
ente sublime,
alma universal,
dignai-vos, pois,
vós que sois o mesmo
e único Deus,
amoroso Pai,
Supremo Senhor,
seja de onde for,
vinde, por favor.

Racimo de luz,
sumo amo,
almonume,
assomai aos cimos,
florescei nos cumes.

Vós que sois
licor, vinho,
maná, mel
do seio da Terra,
do imo do Céu,
vinde ao cume dos montes,

Saciai a nossa fome,
saciai a nossa sede,

saciai nosso desejo.




Batizado como Edivaldo Motta, filho de Milton Motta, barbeiro, e Tarcília Rangel, gari, nascido a 27 de outubro de 1959, em Coroa da Onça, interior de São Mateus, Espírito Santo, o poeta Waldo Motta (que, antes de 2002, era Valdo Motta) é autor de, entre outros, Eis o homem (FCAA-UFES, 1987), Poiezen (Massao Ohno/Ufes, 1990), Bundo e outros poemas (Unicamp, 1996), finalista do prêmio Jabuti 1997, Recanto - poema das 7 letras (Ímã, 2002) e Transpaixão (Edufes, 2009, 2. ed.), leitura obrigatória para o Vestibular da UFES, 2010-12. Indicado pelo Instituto Goethe-SP, ganhou do Landeshauptstadt München Kulturreferat e Fundação Villa Waldberta uma bolsa e estadia de 3 meses na Villa Waldberta, Alemanha, em 2001-02, com o projeto do livro Terra sem mal, e foi writer-in-residence, por um mês, em 2002, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, EUA.
Experimenta linguagens e formas diversas, pesquisa culturas arcaicas, mitos, símbolos, religiões, escarafuncha todos os saberes e propõe um sistema de pensamento, cujo eixo ou fundamento é a concepção do lugar sagrado, leia-se sacro -- uma síntese de arte, ciência e religião.  Atende convites para leituras, performances, oficinas e palestras e tem um blogue para quem quiser saber mais: waldomotta.blogspot.com

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