![]() |
O galope de Ulisses (Editora Patuá, 2014), antologia poética de José Inácio Vieira de Melo |
Escrever sobre poesia é entrar no palácio de espelhos e ver-se todo, ora distorcidamente diminuído, ora ampliando-se em imensidão. Uma poética é uma voz múltipla, que em sua dispersão, cruza-se no instante do poema. Não são poucos os filósofos que falam do caráter social, dialógico ou rizomático da linguagem. Seguindo o caminho múltiplo da linguagem nos encontramos com os poemas reunidos sob o título de “O galope de Ulisses” de José Inácio Vieira de Melo. O belo livro editado pela Editora Patuá, de um dos grandes editores de poesia dos nossos dias, o incansável Eduardo Lacerda, tem seleção, organização e prefácio de Igor Fagundes, estudioso do universo do sertão que está em toda parte de José Inácio. Seus poemas-vozes são ecos de um sertanejo que se lança na estrada etérea da poesia, “Ouço vozes – muitas vozes – / dentro de mim mesmo, / todas dizem que é preciso prosseguir”.
Encontrar a poesia de José Inácio é também encontrar-se na infância da roça, na secura do sertão da juventude, no adulto consciente do tempo que passa, e não fosse a memória, não haveria nem mesmo consciência possível. A memória é, no poeta, matéria prima do seu redemoinho de signos. Os poemas de “O galope de Ulisses” espelham uma humanidade atemporal que apenas não se esvai em esquecimento porque a literatura a salva.
Na poesia de José Inácio caberiam facilmente rótulos, como poeta do sertão do nosso tempo. Contudo sua poesia está demais em perspectiva. O sertão de José Inácio abre-se ao universo, seja ouvindo o ruído das estrelas, “Aqui, na Cerca de Pedra / nesta noite caatingueira, / estou em silêncio, ouvindo / o silêncio das estrelas”, seja nos seus diálogos com a mitologia, “Na boca da noite, a voz / incendeia o silêncio de Ulisses, / onde dormem as águas do ser”. Cabe assim, à poesia de José Inácio, ser tanto e tão somente ser. Qualquer esforço para rótulos ou identidades fixas é vão. Para ser tanto é preciso ser na diferença e não na uniformidade. É ser as diferenças nas nuances do galope da vida, “Esse menino é todo diferente dos outros”. Mas o que fazer com o diferente e a diferença? Seria mais fácil aprisionar a voz que canta na gaiola das totalidades homogeneizantes, mas no caso de José Inácio, ele escolhe o canto liberto.
O livro “O galope de Ulisses” se apresenta em quatro séries de poemas: Galopar na infância é a minha metafísica; No sertão, o princípio do enigma, o galope para dentro do redemoinho; Quando o homem chega dentro da criança, o infinito cai e a casa começa; Pois a verdade – a verdade verdadeira – é escutar dentro do canto a imensidão. Não são capítulos, são agrupamentos móveis, intitulados com versos de poemas de seus livros anteriores. Uma coletânea que nos permite ter uma boa noção do universo poético de José Inácio.
E a primeira parte trata exatamente do menino diferente que se descobre poeta. E é exatamente nas infinitas possibilidades da diferença que o poeta acaba encontrando guarida para sua orfandade. A primeira série de poemas do livro traz o menino poeta perdido frente à imensidão da vida, como no poema “Encruzilhada”, “Algo me aflige e não sei o que é. / Sinto relampejos de minhas existências / e não sei o que fazer e nem para onde ir”.
Seu encontrar-se se dará, então, pelo signo poético. O poeta declara “Estou exausto de ser uma representação”. Imagino que a própria poesia está cansada dessa gasta palavra. Até mesmo porque não há representação. O que há são criações de novos mundos na poesia e não representação do mundo. Prova disso são os versos de outro poema intitulado, ao meu ver, ironicamente de “Unidade”: “Tudo está em mim e é intransponível. Não há signo / não há deus que me comunique por inteiro”. O poeta não quer representar a paisagem, ele quer cria-la, “E mais uma vez subo ao telhado da infância / e com os passarinhos vou aprendendo / a ser o voo dentro da paisagem”.
Outro poema pelo qual o leitor não passa incólume é “Pedra Só”. Nele o poeta funda um reino, o reino de “PEDRA SÓ”. Na solidão do sertão e na aridez da pedra brotam Ulisses, Heitor, Aquiles, diálogos de mitos e ritos. “Homero, cantador assombrado / pelos astros e por seus rastros / singrou os mares da imaginação / e assim foi o inventor de deuses e homens”. O verso salva-nos do tempo que passa impetuoso (ou seria nós que passamos por ele?). A poesia recorta, paralisa, redimensiona a paisagem sertaneja no qual se inscreve o poeta com sua caneta escarlate, “Sertão, cartilha e dicionário / que recupera o fôlego do ser / e laça as águas do momento / que escorregava da memória”. A memória é volátil, mas o poema é antídoto ao efêmero. Eternizada no poema, a terra de “PEDRA SÓ” guardará para sempre seus enigmas, suas musas, seus personagens, seus sóis, uma vez que o esquecimento é a mesma coisa que nunca ter sido.
A poesia de José Inácio Vieira de Melo tem traços vibrantes como o sol nordestino. Elementos como fogo, água, vento, terra se articulam costurando uma poética única em nosso tempo. Os poemas de “O galope de Ulisses” são uma ótima opção de entrada nesse universo onde paisagens como a caatinga e a noite do sertão agenciam a linguagem na poesia. Mesmo o que parece pétreo em seus versos é temporário, pois as humidades dos sentidos estão a germinar sempre novas possibilidades de leitura.
Marcos Aurelio Marques é Prof. de Filosofia – FAAr; Analista Pedagógico - Athenas Grupo Educacional; Graduado em Letras Português-Francês – UEPG; Mestre em Geografia - UNIR-RO; Doutorando em Geografia – UFPR; Pesquisador na interface geografia, filosofia e literatura.