(comentário a um ensaio no qual fui citada por Luís Maffei)
O apelo virtual com que me convocava uma notificação do Face Book levou-me, por intermédio do mestrando Ricardo Borges, a ler um recente ensaio de Luís Maffei, intitulado "Gloriosos pois fingidos: o esvaimento dos deuses e o consílio marítimo d'Os Lusíadas"[1], no qual o jovem professor da UFF se propõe dialogar com uma de minhas teses, vinculada à minha leitura do Canto VI, em que se dá o segundo consílio. Dialoguei já outras vezes, pessoalmente, com Maffei, no evento "Um Dia de Camões", que criamos conjuntamente, e no ano passado realizou-se pela terceira vez, na Universidade onde ele exerce a docência. Invocando o direito de resposta, e a partir da deixa que o autor oferece - quando, já na conclusão do seu ensaio, usa a expressão diálogos francos - venho agora comentar alguns trechos e aspectos do seu discurso, particularmente no que concerne às suas observações sobre o meu estudo, porque entendo que necessitem alguns ajustes.
E começo pela observação principal, que diz respeito ao seguinte ponto: Maffei, já a partir do resumo, e até a conclusão do seu ensaio, refere-se à minha tese sobre o consílio submarino como se procedesse de "um estudo", o qual seria o capítulo VIII do meu livro No Reino da Água o Rei do Vinho[2], publicado em 2013, no Brasil. Restringindo-se a este capítulo, ao qual atribui o adjetivo "recente", e citando trabalhos dos demais autores que comenta, todos com datas anteriores ao meu referido livro, transmite uma informação que induzirá o seu leitor a um duplo engano, que é imperioso desfazer: o de pensar que sou autora de uma tese postulada num estudo sobre Os Lusíadas, mais recente que outros textos, de autores específicos, quando na verdade sou autora de várias teses sobre Os Lusíadas, enunciadas todas - inclusive a que o ensaio põe em causa - em dois livros e diversos estudos, muitos deles anteriores aos outros citados textos, de outros autores.
Com efeito, salvo o ensaio de Fernando Gil, todos os textos por ele citados são posteriores aos textos em que divulguei minhas teses sobre Os Lusíadas, incluindo-se minha interpretação do consílio submarino, no Canto VI. Já em 2001, tais teses estavam postuladas, não em simples ensaio, mas como um longo estudo, em minha tese de doutoramento, defendida na UFRJ[3]; e depois foram sendo sucessivamente divulgadas, em textos diversos, a começar pelo longo ensaio "A Traça no Pano: contradicção de Baco n'Os Lusíadas", publicado em 2006[4]; ao qual se seguiram o livro O Canto Molhado: Metamorfose d' Os Lusíadas, publicado em 2008[5], e outros sucessivos ensaios, publicados em periódicos, no Brasil e em Portugal[6], textos estes que sei terem sido com certeza lidos por Maffei, pois dele mesmo ouvi, pessoalmente, que em suas aulas comentava com muito apreço "A Traça no Pano" e O Canto Molhado.
Entretanto, se quisermos ser ainda mais exatos, teremos que citar três textos de minha autoria, anteriores ao de Fernando Gil, em que já se iniciava a defesa das teses que me levaram às descobertas, sem dúvida pioneiras, com que tenho contribuído para os estudos d'Os Lusíadas. Refiro-me aos ensaios: “Navegante Navegado - do Oriente Desejado ao Desejo Orientalizado, a Sintaxe Reversiva da Descoberta”; "A Desejada Parte Oriental: Combinatórias Poéticas de uma Metáfora d’Os Lusíadas a Invenção de Orfeu"; e " Poética Oceânica: Duas Chaves para Compreender Os Lusíadas"; publicados, respectivamente, em 1999, 1998 e 1992[7].
Esclarecendo, observemos a cronologia dos textos por ele citados e comentados.
Já na segunda página, começa por citar o livro de ensaios A Lira Dourada e a Tuba Canora[8]de Aguiar e Silva, publicado em 2008, no mesmo ano, porém posteriormente à publicação do meu O Canto Molhado; dois anos depois de publicado o texto "A Traça no Pano: contradicção de Baco n'Os Lusíadas" (que ele, Aguiar e Silva, também lera alguns meses antes de inserir no livro supracitado o ensaio "O Mito de Baco e seu Significado n'Os Lusíadas"); e sete anos depois de defendida minha tese, na UFRJ.
Nesta mesma página, cita Maffei o verbete "Consílio dos Deuses Marinhos", escrito por Luís de Oliveira e Silva para o Dicionário de Luís de Camões[9], coordenado por Aguiar e Silva, e no qual talvez tenha sido eu a única estudiosa de Camões a quem coube a distinta honra de não participar. A data do verbete, porém, como a do que se refere ao consílio olímpico, ambos publicados no referido dicionário, é 2011, o mesmo ano em que se publicou o meu ensaio "Uma Distração Implicativa: porque o consílio olímpico ofuscou o consílio submarino n'Os Lusíadas"[10]; e, obviamente, posterior em dez anos à minha defesa de tese, na UFRJ, em cinco anos ao ensaio "A Traça no Pano", e em três anos a O Canto Molhado.
No que concerne à questão da precedência cronológica, resta apenas observar que o estudo de Fernando Gil, "O Malogro d'Os Lusíadas (2) - a resistência de Baco", publicado em 1999, como subcapítulo de Viagens do Olhar: retrospecção, visão e profecia no renascimento português, é de fato anterior à minha defesa de tese, embora eu o tenha lido (num pequeno opúsculo)[11] apenas em fins de 2000, quando a tese já estava praticamente concluída, e a leitura nada me tenha acrescentado, salvo a satisfação de encontrar indícios de uma ressonância contemporânea sob certos aspectos confirmativa das minhas teses sobre o sentido da presença de Baco n'Os Lusíadas; fatos a que me refiro, já no capítulo primeiro da tese, em que narro todo o percurso por mim cumprido através da fortuna crítica de Camões, até o momento da minha pesquisa.
Mas é precisamente este texto de Fernando Gil que me serve como ponto de passagem a outro aspecto do ensaio de Maffei que devo aqui trazer à pauta, já não concernente à questão da primazia na releitura de tópicos cruciais - como o da presença de Baco e da primazia do consílio submarino sobre o consílio olímpico - e sim ao conteúdo, à extensão e à profundidade da releitura. Isto porque - como procurei demonstrar nos já referidos estudos que publiquei sobre Os Lusíadas - o texto de Fernando Gil é um breve item de um capítulo, no qual aborda rapidamente a questão da presença de Baco no poema, decerto com um olhar que diverge do já cristalizado pela tradição crítica, e em parcial convergência com aquele que lancei eu sobre esta presença, mas de um modo que - diga-se a bem da verdade - não se pode equiparar ao estudo sistemático que empreendi, ao longo dos oito capítulos de minha tese, depois publicados no livro O Canto Molhado.
Aqui surge este ponto crucial da questão: o que distingue o meu estudo de outros nos quais Baco foi citado com um olhar já diverso daquele a ele lançado pela tradição crítica (e anteriormente à minha leitura, no que concerne a este tópico, estão apenas as de Jorge de Sena, António José Saraiva, Vasco Graça Moura e Fernando Gil), é que nenhum daqueles olhares passou de sugestões ligeiras, ou mesmo contraditórias (como foi o caso da abordagem de Baco por Graça Moura em suas argutas, porém breves e inconclusivas especulações), enquanto minha abordagem se fez em termos da análise semântica do texto d'Os Lusíadas, tão veementemente reclamada por Sena, desde a década de 40 do século XX, e da qual extraí teses conclusivas, de caráter pioneiro e revolucionário para a compreensão d'Os Lusíadas. Esta, sim, é a diferença crucial, bem percebida por Silvina Rodrigues Lopes, Stephen Reckert, Eduardo Lourenço e Rita Marnoto, que souberam ler e compreender o mais extensivo alcance das minhas teses sobre Os Lusíadas. E este ponto diz respeito ao ensaio do Maffei porque em sua argumentação transparece que ao ler os meus estudos não esteve atento a este pressuposto indispensável à justa compreensão do seu sentido.
Mas em que a análise semântica d'Os Lusíadas, por mim procedida, implicaria uma diferença crucial de minha abordagem, e no que esta diferença viria ao caso, neste meu comentário aos dois assuntos enfocados por Maffei em seu texto - o consílio submarino e a presença de Baco no poema? Vem ao caso porque - embora se refira expressamente à distinção que faço entre as leituras d'Os Lusíadas adstritas ao seu enunciado, e aquelas que lhe tomam em conta a enunciação - Maffei também ao enunciado se atém, e por isto, na sua abordagem da figura de Baco, limita-se à primeira e mais superficial função por ele desempenhada no poema, quando na verdade, como demonstrei em minha tese, Baco desempenha no poema um conjunto de seis funções, de complexidade crescente, achando-se as mais complexas, não ao nível do enunciado, e sim da enunciação.
Neste ensaio, aliás, Maffei comete distrações em relação ao texto d'Os Lusíadas, tanto ao nível de sua enunciação quanto ao do seu enunciado; e de suas especulações extrai ilações fundadas numa falsa premissa, que parece derivar do mesmo equívoco - já por mim observado, e, antes de mim, por Jorge de Sena e António José Saraiva – em que incorreu a tradição crítica, e continuam a incorrer muitos leitores atuais de Camões; equívoco este que consiste em, esquecendo que Os Lusíadas deve, antes de tudo, ser lido como um poema, restringirem-se a comentar o seu texto como se fosse um texto histórico, ou como se não houvesse, para a análise de poemas, um instrumental teórico, cujo objeto são as categorias poéticas do texto, que imprimem poeticidade ao discurso; ou, dizendo em outras palavras: como se não houvesse instrumentos científicos para a observação do discurso semântico, para além dos conteúdos do enunciado de um texto poético.
Assim, por exemplo, sua afirmação de que "Baco é o deus derrotado num universo já derrotado por um mundo onde os deuses não cabiam senão como fantasia" (p. 187) resvala sem atingir o sentido da presença desta figura no poema, porque (ainda que não levemos em conta a impropriedade, aqui, do termo fantasia) pouco interessa, em termos de constituição da poética d’ Os Lusíadas, serem os deuses pagãos “verdadeiros” ou “fingidos”; e isto, não porque fossem ficcionais, mas porque são metafóricos, entes poéticos, reais enquanto figuras do texto, que assim seriam sempre, aliás, mesmo se historicamente, no tempo de Camões, ainda fossem deuses oficialmente venerados, como o foram na antiguidade. A tese que esta afirmação veicula parte de uma premissa falsa, porque não é a crença nas divindades quem diz do caráter e sentido de sua presença em textos poéticos, e pensar desta maneira é ancorar num tópico irrisório, cometendo por isto enganos interpretativos, inclusive com relação aos textos poéticos da mais remota antiguidade. Ou seria a crença de Homero nos deuses quem responderia pela qualidade do seu texto? Do ponto de vista do poético, em nada importa que Homero acreditasse em Atena e Zeus, e Camões já não venerasse Vênus ou Baco; pois o que vem ao caso são as esplêndidas metáforas, metonímias, as figurações extraordinárias, as reiterações semânticas que em ambos conferiram aos seus textos a densidade do poético. E neste sentido podemos, com razão, afirmar que Camões venerava, sim, as divindades - entre elas, Baco - tanto quanto as veneravam Homero e Ovídio, e outros tantos que sugeriram os versos famosos d’ Os Lusíadas, em que Camões dizia ter sido o deus da vinha decantado De quantos bebem a água de Parnaso(I, 32).
Também quando afirma que "o Consílio Marítimo é a última participação direta e consistente de Baco no poema" (p. 180), Maffei evidentemente desconsidera (ao nível do enunciado) toda a passagem entre o fim do Canto VII e início do VIII, em que o vencedor da Indiaé apresentado, com honra e glória, pelo Catual a Paulo da Gama, como figura basilar da História hindu, e Luso, o seu filho, é apresentado pelo Gama ao Catual como legendário fundador da Lusitânia, dele dizendo que Foi filho e companheiro do Tebano /Que tão diversas partes conquistou(VIII, 3) e também que o ramo por ele empunhado O verde tirso foi, de Baco usado (VIII, 4), em duas referências explícitas à figura do deus que - sustento - se lemos o poema como poema, é a chave-mestra d'Os Lusíadas.
Quanto à enunciação, porque a desconsidera, Maffei não percebe a importância crucial, para o sentido do poema, que tem, na mesma passagem, o trecho conclusivo do Canto VII, no qual, da efígie de Luso, irrompe em excurso revelador o próprio Luís, poeta autor do poema, revelando-se assim a sua identificação com a figura do deus exilado, já declarada explicitamente numa de suas oitavas, dedicada a um vice-rei da India, D. Constantino de Bragança.
A propósito da enunciação, devo esclarecer Maffei e seus leitores quanto ao sentido por mim atribuído ao termo, uma vez que em certo trecho do seu discurso irrompe esta indagação: "O que entende a autora com predomínio da enunciação sobre o enunciado?"; pergunta à qual responde evasivamente, mas, para responder devidamente, deveria retornar à leitura de O Canto Molhado, a partir do item "Perspectivas Hermenêuticas", e a diversos outros trechos dos capítulos, nos quais me refiro ao instrumental teórico de minha abordagem, nele incluindo-se os conceitos formulados por Julia Kristeva em seu estudo La Révolution du Langage Poétique[12]. Noções como as de enunciado e enunciação, genotexto e fenotexto, discurso linear e discurso tabular, pulsão semiótica e irrupção pulsional, foram por mim explicitadas, como pressupostos teóricos trazidos de Kristeva, entre outros conceitos de outros estudiosos do discurso (o de metáfora viva, por exemplo, postulado por Ricoeur[13], o de correlativo objetivo, formulado por T. S. Eliot[14], o de eixos sintagmático e paradigmático, de Jakobson[15], entre outros), invocados em minha abordagem d'Os Lusíadas. A propósito deste ponto, é importante sublinhar a diferença decisiva que se dá entre abordagens que, além de não se debruçarem analiticamente sobre o texto, dele se aproximam desprovidas de instrumentação teórica, e as que se acercam ao texto munidas do instrumental e com atitude analítica.
Há, porém, um ponto mais crítico do ensaio em pauta, sobre o qual deve incidir com atenção o olhar do seu leitor. Refiro-me ao fato de que Maffei, a certa altura do seu discurso - precisamente quando se propõe enunciar a sua própria leitura, em diálogo com as leituras de Luís de Oliveira e Silva e Luiza Nóbrega (a ordem dos nomes é a que ele lhes dá, muito embora, como já esclareci, o verbete citado seja muito posterior à publicação de minhas teses) - esquece de informar o leitor que algumas de suas principais afirmações repetem, em paráfrases, as que já estavam explicitadas nos textos de que sou autora. À página 181, por exemplo - como se extraísse uma ilação a partir da comparação entre os textos dos dois autores que comenta - a partir da afirmação de Oliveira e Silva, segundo a qual "Baco se esvai em fumo", declara que "Baco só pode se esvair porque sua ação no poema é fundamental... ineficaz dentro da diegese, eficacíssima simbolicamente", mas não acrescenta que esta sua afirmação é uma adesão parafrástica a um dos ângulos de minha tese.
E assim prossegue, quando - invocando os versos (No mais interno fundo das profundas / Cavernas altas, onde o mar se esconde), já por mim destacados e bastante comentados, como exemplo de trecho em que o enunciado porta a enunciação, remetendo o leitor esclarecido, mais que à fundura submarina, à subcamada trágico-lírica do poema - assume como sua própria ilação o que deveria comentar como adquirido a partir da minha leitura, em cujo cerne se acha precisamente a profundidade que se deve acessar para bem compreender Os Lusíadas; servindo, aliás, o termo "Profundidade d'Os Lusíadas" de subtítulo ao capítulo IX de No Reino da Água o Rei do Vinho.
O mesmo se reitera quando, na página 182, afirma que "a fala báquica... nada tem de um dionisíaco desejo de excesso, superação, transe místico ou sexual, e, inclusive, não deixa de antecipar certo chamamento à dureza que, em tom disfarçadamente elegíaco, encerra o Canto" - no que se subentende o tópico-chave de minha tese, segundo a qual o Baco d'Os Lusíadas, entre outras funções, desempenha a do porta-voz trágico-lírico de defesa da vida campestre contra o avanço mercantil em curso no tempo de Camões. E, prosseguindo na observação da convergência entre os discursos de Baco e do Velho do Canto IV, a seguir desenvolve um raciocínio segundo o qual esta convergência apontaria o caráter meramente ficcional de Baco, bem como dos deuses, e a inoperância do segundo consílio no plano diegético, em contraste com sua eficácia no plano que ora denomina de ficcional, ora de simbólico, remetendo ambos os termos, implicitamente, à camada semântica e ao plano do discurso, pois conclui afirmando que "é justamente enquanto entidade ficcional que Baco é basilar no poema", e que "o segundo consílio é 'totalmente inoperante' apenas no plano diegético, não no conjunto portentoso de construção de sentidos d'Os Lusíadas."
Curioso é que só neste ponto abra um parágrafo com esta frase: "Chamo agora à conversa Luiza Nóbrega", pois, na verdade, já me chamara muito antes à conversa, porém in off, ou seja, sem mencionar o meu nome onde ele estava implícito, nas ilações desenvolvidas em paráfrase, e até mesmo quando usa o termo "velho do Canto IV", já por mim usado, ao contrário da tradição crítica, que unanimemente a ele se refere como velho do Restelo, assim como chama Inês de Castro à Linda Inês, sobrepondo-se ao texto poético o fato histórico.
Não me deterei aqui em contestar que mesmo no plano diegético o segundo consílio, ao invés de inoperante, é operativo, pois dele é que resulta o encontro das Nereidas com os Ventos, prenúncio da união entre Nautas e Ninfas, e o despertar dos sonolentos marujos para a fundura que lhes subjaz. Nem me alongarei em observar que, ao incluir Baco na linhagem do que chama "degenerados deuses", a leitura empreendida por Maffei ainda passa ao largo e resvala do que entendo ser a compreensão das funções efetivamente desempenhadas por Baco n'Os Lusíadas. O que mais interessa, no que me diz respeito, é observar que, assim discorrendo, o jovem professor e escritor transmitirá talvez ao seu aluno e leitor a errônea ideia de que compara dois textos ensaísticos, desta comparação extraindo uma ilação própria, quando na verdade se refere a uma parte de um longo estudo (por mim executado), anterior aos demais, e deles distinto pelo fato de que não se limita a tecer especulações, mas empreende, em caráter sistemático, a análise semântica do texto d'Os Lusíadas.
Seria oportuno aqui iluminar certos ângulos significativos, como, por exemplo, que antes dos meus estudos era unânime mencionar-se, em cursos e textos de Literatura Portuguesa, o termo "o consílio d'Os Lusíadas", até quando afirmei o óbvio: que não havia o consílio, e sim os consílios, sendo, além disto, o segundo superior ao primeiro, a nível da enunciação como do enunciado. Permito-me uma digressão, concernente à recepção das descobertas procedidas por pesquisadores pioneiros, particularmente em se tratando do feudo loteado que é hoje o dos estudos camonianos, fato já de antes denunciado por Jorge de Sena, há mais de setenta anos. De minha parte, observei que, quando ainda recém-doutora, tive minhas teses sucessivamente rejeitadas, depois ocultadas, e - quando já não era possível rejeitá-las, ou mesmo ocultá-las - integradas, porém sem menção a sua autoria, ou, se mencionada, nunca reconhecida em sua primazia, salvo por alguns raros estudiosos.
Salto, pois, sobre as elucubrações tecidas pelo autor em torno do enunciado, e passo a concluir dialogando com a metáfora do "fundo do copo", extraída por Maffei de Oliveira e Silva: "No fundo de um copo, imagino que gostasse de dizer Luiza Nóbrega, está a água, mesmo que residualmente, como o elemento que liga Baco a Camões, e permite que os ensaístas convirjam". (p. 188). Se tal diálogo será possível, não afirmo nem nego, mas sem dúvida foi precisamente esta conclusão, mencionada em frase de sentido ambíguo (o condicional "que gostasse" diz que eu gostaria de usar a metáfora do copo ou de afirmar a convergência de Baco e água?), o que afirmei no meu estudo, desde sua primeira etapa: que água e Baco são convergentes, num poema construído por uma poética oceânica, assim por mim designada desde 1982, quando li pela primeira vez Os Lusíadas. Mas o que cumpre ter em mente é que, para proferir tal afirmação, foi preciso antes cumprir um longo percurso, iniciado em 1982, e consumado através de um estudo sistemático, procedido cientificamente, desde a análise da combinatória dos núcleos semânticos básicos, até a demonstração da reiteração destes semas nos eixos em que se alinham, constituindo os campos semânticos do húmido elemento e de Baco irado– divindade execrada até por camonianos contemporâneos, mas que n'Os Lusíadasnada tem de degenerado, e tudo tem, sim, de indignado, com justíssima causa para sua indignação, como se extrai do texto d'Os Lusíadas, e se confirma em seu intertexto, com o que diz o poeta na referida oitava ao vice-rei: Rômulo, Baco e outros que alcançaram/Nomes de semideuses soberanos,/Enquanto pelo mundo exercitaram/Altos feitos, e quase mais que humanos,/Com justíssima causa se queixaram/Que não lhes responderam os mundanos/Favores do rumor, justos e iguais/A seus merecimentos imortais.
Natal, 2 de abril de 2015
[1]In: Letras e Letras, v. 30, n. 1 (jan/jul. 2014). Uberlândia: UFU, 2015, pp. 177-189.
[2]NÓBREGA, Luiza. No Reino da Água o Rei do Vinho:submersão dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d' Os Lusíadas. Nata: EDUFRN/ANRL, 2013.
[3]NÓBREGA, Luiza . "A Traça no Pano: contradicção de Baco n'Os Lusíadas". Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.
[4]NÓBREGA, Luiza . "A Traça no Pano: contradicção de Baco n'Os Lusíadas". In: Luiz Vaz de Camões Revisitado. Santa Barbara Portuguese Studies, vol. VII. Santa Barbara, 2006, pp.79-115.
[5]NÓBREGA, Luiza . O Canto Molhado: Metamorfose d' Os Lusíadas (Leitura do Poema como Poema). Lisboa: Aqva/Publidisa, 2008.
[6]NÓBREGA, Luiza. "Liber Pater: O Louvor de Baco da Antiguidade Greco-Latina ao Renascimento Luso-Italiano". In: Biblos/Revista da Faculdade de Letras/Universidade de Coimbra, 2008, pp. 119-133. "Navegante Navegado: Canto da Ninfa-Sereia e Paixão Dionisíaca d'Os Lusíadas". In: Românica, nº 17. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa: 2008, pp. 229-245. "O Velho que não é do Restelo". In: Revista Brasileira, nº 63, abril/maio/junho de 2010. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, pp. 198-238. "No Reino da Água o Rei do Vinho: o triunfo de Baco n'Os Lusíadas". In: Revista Brasileira, nº 68, julho/agosto/setembro de 2011. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, pp. 161-192. "No Reino da Água o Rei do Vinho (II): conspiração dionisíaca e triunfo do trágico-lírico n'Os Lusíadas". In: Revista Brasileira, nº 70, janeiro/fevereiro/março de 2012. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, pp. 251-264. "Um Poema, Duas Viagens: dicção e contradicção n'Os Lusíadas". In: Convergência Lusíada. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2012. "Camões e Baco: a exclusão e dissidência como fatores genético-semânticos n'Os Lusíadas". Niterói: Revista Abril, 2012. "Luso-Liso-Lois-Luís: a dissidência lúdico-lingüística subliminar n'Os Lusíadas". In: Colóquio-Letras, nº 188, janeiro de 2015. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 177-189.
[7]NÓBREGA, Luiza. “Navegante Navegado - do Oriente Desejado ao Desejo Orientalizado, a Sintaxe Reversiva da Descoberta”. In: Literatura e Pluralidade Cultural. Lisboa: Colibri, 1999. "A Desejada Parte Oriental: Combinatórias Poéticas de uma Metáfora d’Os Lusíadas a Invenção de Orfeu". In: Cânones e Contextos - anais do V congresso da ABRALIC. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1998. “Poética Oceânica: Duas Chaves para Compreender Os Lusíadas”. In: Cerrados/Revista do Departamento de Letras da UnB. Brasilia: 1992.
[8] SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. A Lira Dourada e a Tuba Canora - novos ensaios camonianos. Lisboa: Cotovia, 2008.
[9]SILVA, Luís de Oliveira e. Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011
[10]"Uma Distração Implicativa: porque o consílio olímpico ofuscou o consílio submarino n'Os Lusíadas". In: Por S' Entender Bem a Letra. Homenagem a Stephen Reckert. Lisboa: INCM, 2011, pp. 437-452.
[11]GIL, Fernando. "O Malogro d'Os Lusíadas (2): a resistência de Baco". In: O Efeito Lusíadas. Lisboa: Sá da Costa, 1999, pp. 51-56.
[12]KRISTEVA, Julia. La Révolution du Langage Poétique. Paris: Seuil, 1974.
[13]RICOEUR, Paul. La Métaphore Vive. Paris: Seuil, 1975.
[14]ELIOT, T. S. In: Selected Essays. London: Faber and Faber, 1949, p. 141-46.
[15]JAKOBSON, R. Questions de Poétique. Paris: Seuil, 1973.
PARA LER O ESTUDO
DE LUÍS MAFFEI, CLIQUE
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Luiza Nóbregaé poeta, ensaísta, ficcionista, pintora e pesquisadora. Nasceu em Fortaleza e viveu dos seis aos vinte e três anos em Natal, onde se formou em Direito e cursou Sociologia e Política até o terceiro ano, quando, perseguida pela repressão política dos anos de chumbo, mudou-se em 1971 para o Rio de Janeiro, onde estudou Artes Plásticas, com Ivan Serpa, no Centro de Pesquisa de Arte, e freqüentou os grupos de estudos de Nise da Silveira. De vocação transdisciplinar, dedicou-se às Artes e à Literatura, obtendo, em 1986, o grau de mestre em Literatura Brasileira (UnB), e, em 2001, o de doutor em Letras Vernáculas (UFRJ). De 1988 a 2008, em três estágios longos intermitentes, num total de dez anos, viveu como pesquisadora, em três cidades portuguesas: Lisboa, Porto e Évora. No campo artístico, realizou diversas exposições individuais e orientou crianças, adolescentes e adultos. No campo literário, dedicou-se ao ensaio, à poesia e à ficção, especializou-se no estudo dos discursos poéticos, defendeu tese sobre Os Lusíadas de Camões, e tem publicado ensaios em diversos periódicos acadêmicos nacionais e internacionais, sobre poetas e escritores. Publicou: O Canto Molhado. Metamorfose d’ Os Lusíadas: leitura do poema como poema (Lisboa: Publidisa, 2008); Quero Ser o que Passa: a poesia de Lêdo Ivo (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011); e No Reino da Água o Rei do Vinho: submersão dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d’ Os Lusíadas (Natal: EDUFRN, 2013). Atualmente é professora adjunta no Departamento de Artes da UFRN.