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2 contos de Cinthia Kriemler

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Ilustração: Daniblast



Sutiã de renda
A idade só se aplica às pessoas vulgares
            Hermann Hesse

Comprou o sutiã preto de renda com a respiração suspensa. Finalmente. Tinha esperado o mês inteiro pelo dinheiro mirrado da aposentadoria para poder satisfazer aquele desejo. Passava todos os dias em frente à loja, em suas caminhadas para esticar as pernas, rezando para que a peça ainda estivesse lá quando pudesse comprá-la. Agora, abraçando a sacola decorada com a foto de um passarinho, não economizava o sorriso. Naquele mês, teria que optar entre o remédio de pressão e o do diabetes, mas ninguém precisava saber disso. Nem os filhos que nunca a visitavam, nem o médico ao qual só iria dali a um mês. Talvez fosse ao posto de saúde para pegar uma cartela daqueles remédios fracos que mal faziam efeito. Melhor que nada. Mas iria depois.Andava se sentindo muito bem para se preocupar com isso.
Apressando o passo, esqueceu as doenças e o dinheiro gasto, e chegou ao pequeno apartamento de quarto e sala em cima da padaria. A escada cansou-a um pouco e ela tomou um copo d'água gelado. Deixando sobre uma cadeira a sacola de passarinho, abriu o armário acanhado, retirando de lá um vestido preto com decote em V, que depositou sobre a cama. Voltou ao armário, pegando, dessa vez, uma caixa branca quadrada, que colocou sobre uma poltrona. Pegando toalha e roupão no varal, entrou no banheiro. Demorou o dobro do tempo sob a água morna do chuveiro. No mês seguinte a luz viria mais cara, mas ela não se importaria com a cara feia dos filhos, que insistiam em lhe pagar o aluguel e a bendita luz. E eles repetiriam tudo o que ela já sabia. Que uma senhora de 74 anos não devia morar sozinha. Que num espaço de conveniência para idosos haveria alguém para cuidar dela, e pessoas com quem conversar. Ela não queria conversar. Se quisesse falar com gente velha, conversaria sozinha. Gente velha é só lembranças tristes. Pessoas que já morreram, sonhos que já morreram, lugares e coisas que não existem mais. Gente velha é mórbida, antecipando o inevitável com os olhos marejados, com uma resignação doentia. Morrendo antes da morte. Ela, não. Ela ainda estava viva, bem viva. Por isso, nada de abrigos disfarçados por nomes bonitos. Preferia o quartoesala reduzido, de onde via os carros e as pessoas na rua, dia e noite, e de onde ouvia o entra e sai da padaria. O cheiro do pão fresco sendo feito de manhã bem cedo a estimulava a sair da cama para viver. Viver o que fosse, o que desse, sem presságios ou receios.
Logo que aquele aroma delicioso começava o dia, Jussara, a mocinha que trabalhava no balcão da padaria, tocava a campainha para lhe entregar dois pãezinhos de sal. Antes mesmo de atender os primeiros clientes. Perguntavam uma à outra um como vai sincero, os pães eram pagos e as duas se despediam. Até que o fim de tarde chegava e um outro encontro se repetia, nos mesmos moldes. 
No início, assim que Jussara se ofereceu para ajudá-la, ela a convidou a acompanhá-la no café. A jovem agradeceu e recusou. Na padaria, tinha de graça não somente o café e o pão, mas bolos, biscoitos, queijos e outros frios que o patrão liberava para todos os funcionários. Demorou um tempo para ela descobrir como retribuir a gentileza dos pães em domicílio. Mas, uma tarde, abriu a porta com as agulhas de tricô na mão; um suéter que terminava para um neto, mesmo sabendo que ele não o usaria. Jussara não tinha um suéter feito à mão. E ela soube o que dar àquela quase menina de rosto redondo. Quanta luz nos olhos que abriram o presente. Uma surpresa honesta, um meu Deus, que lindo vindo de algum lugar sincero entre a alma e os lábios. Ficaram amigas.
Saindo do banho prolongado, secou e penteou os cabelos lentamente. Pegou um par de meias finas e uma cinta-liga na segunda gaveta do criado mudo, em meio a umas poucas peças de lingerie. Nunca conseguira usar meias-calças. Muito ásperas. Colocou a cinta-liga com a destreza das mulheres experientes e esticou cada pé de meia até que as pernas lhe pareceram bem lisas. Fechou o sutiã novo, regulou as alças e ajeitou os seios dentro dos bojos de renda, feliz com o resultado. Vestiu-se. Em seguida, retirou da caixa branca um par de sapatos pretos de bico fino e salto médio, uma caixa de joias de madeira, forrada com cetim lavrado, e uma máquina de retratos pequena e moderna, presente de Natal dos filhos. Tirando da caixa de joias colar e brincos de pérola, colocou-os. Calçou os sapatos, admirando-os por uns segundos. Passou um batom vermelho e massageou as mãos com um pouco de creme. Três borrifadas longas de um antigo Shocking de Schiaparelli no corpo, e uma rápida nos cabelos. Por fim, examinou-se demoradamente no espelho grande que mandara instalar atrás da porta do quarto. Sorriu. 
Às 19h 30, como sempre, Jussara tocou a campainha. A seu pedido, a mocinha arrumou rapidamente a mesa de jantar solitária, deixando sobre a pia da cozinha a ceia de Ano Novo antecipada em um dia. No dia seguinte seria 31 de dezembro, e ela teria que cumprir a obrigação de ir para a casa de um dos filhos. Mas, antes da obrigação, o prazer. Despediram-se com uma troca de beijos nas bochechas. As de Jussara, cheirando a frituras e pães. As dela, cheirosas com o perfume importado.
Assim que ficou sozinha, buscou no armário da cozinha mais um prato, mais um jogo de talheres e duas taças de cristal insuspeitamente escondidas ao fundo.  Quando a mesa ficou a gosto, fotografou tudo. Depois, esticou o braço, ajeitou o corpo e tirou várias fotos de si mesma. Selfies,  ensinara-lhe o neto metido. Então, a campainha tocou novamente. Ela respirou, ajeitou o vestido no corpo e abriu a porta para uma daquelas noites arrebatadoras que vinha tendo fazia mais de um ano. Olhando o parceiro daquela noite estourar o champanha que trouxera consigo, ela pensou no sutiã de renda. E sentiu o tanto que ainda estava viva. Bem viva.



Ilustração: Daniblast



Uni, duni, te...

Disseram-lhe, à exaustão, que mulher tem que ser independente. Que ela devia fazer como sua mãe que era chefe de família, bom salário, sempre viajando, estudando, se divertindo, mandando no próprio nariz. Que podia seguir o exemplo da tia, física de renome internacional, premiada, das que dão palestra em dólar e entrevista no jornal, solteira por opção, apartamento chique em bairro rico da cidade.  Ou ainda da outra tia, viúva, que administrava sozinha as fazendas da família. Sem filhos, as duas. Sem hora, sem freios, sem satisfações a dar.
Disseram-lhe mais — e repetidamente: que mulher não tem medo da vida. Que seu corpo só pertencia a ela mesma. Que ela não precisava de homem para ser feliz, nem para pagar as contas nem para se sentir segura. Para o sexo, sim. E que homem sabia menos, aguentava menos, valia nada.
Repetiram tanto que ela teve medo. Medo daquelas vontades que sentia no quarto, no escondido das madrugadas sem sono. De querer beijos prolongados e arrepios pelo corpo. De sonhar com o homem alto, moreno, encantador que falaria com ela na exposição de quadros, escolhendo-a entre todas as outras. O homem com quem começaria a se encontrar com frequência e com o qual faria amor num quarto de motel impessoal, depois de um jantar francês regado a vinho bom. Seguiriam se vendo, teriam algumas brigas bobas, por ciúme, e se casariam no verão, em cerimônia para muita gente. Filhos bem paridos, casa confortável, viagem em família todos os anos. Muitos jantares preparados pela empregada cara,no fogão caro equipado com grille timer. Mesas com velas, banheiras com pétalas de rosa, camas com lençóis de cetim — que só depois ela descobriria que escorregavam. Presentes caros, dois, três por ano, para celebrar o Natal, o aniversário e alguma outra coisa. Ela recebendo joias lindas, viagens inesquecíveis. Ele ganhando ternos, pastas de couro, sapatos importados, festas inesquecíveis. Tudo pago com o dinheiro dele. Porque ela não trabalharia mais, assim quese casasse. Seria o que sempre quisera ser: dona de casa. Com orgulho de si mesma; com pena de quem não podia ser. E cuidariados empregados, dos professores particulares dos filhos, da decoração, do cabelo, das unhas, da sobrancelha, das recepções enpetit comitépara o pessoal do trabalho, da vida alheia.
Fariam bodas — de todas as coisas. Conversariam. Cada vez menos. Porque ele ia querer falar de política, de economia. Ela teria sempre como tema os filhos, as viagens e os divórcios das amigas. As amantes, ele as teria sem fazer alarde. Muitas. Mais gostosas, mais fogosas, mais objetos do que ela. Ela, claro, nunca saberia de nada. Sabendo ou não. Um drinque à tarde, com as amigas. Outro mais à noite, para esperar o marido. E vários quando ele esquecesse os teatros, os cinemas, as exposições, a cor dos olhos dela. Tudo cessaria quando estivessem na cama. Com o hálito dela cheirando a pasta de dentes, café, canela, qualquer coisa para afastar do nariz dele o bafo entranhado de álcool. Sim, tudo se resolveria na cama, onde ela o deixaria fazer o que quisesse, boneca de pano imitando orgasmos de mulher liberada. Esquecida de como ainda queria ouvir sussurros no ouvido repetindo “te amo”.
Quando o cansaço chegasse, já seria tempo de pôr do sol. E ela corromperia as próprias dúvidas confrontando-as e lhes perguntando o que poderia fazer se e caso partisse. Retórica. Triste retórica. Ela que só havia desejado ser a mulher de alguém, a mãe de alguém, ter uma casa bonita. Que não quisera ser a cópia da mãe, da tia, da outra tia.
Amada. Erao que ela quisera ser. Amar-se. Devia ter escolhido isso.





Autora, pela Editora Patuá, dos livros Do todo que me cerca (2012) e Sob os escombros (2014), Cinthia Kriemler é contista, cronista e poeta. Carioca, mora em Brasília há mais de 40 anos. Graduada e pós-graduada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília, é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados. Membro da Academia de Letras do Brasil, ALB/DF, Seccional Brasília, cadeira nº 32. Membro da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA e do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal — Sindescritores. É também autora dos livros Para enfim me deitar na minha alma, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (2010) e da novela policial Atos e omissões, ambos reeditado em e-book pela Amazon Brasil (2013). Tem publicações em diversos periódicos impressos e virtuais, além de atuar como colunista, com colaborações fixas na Revista Samizdat e naRevista Biografia.



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