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Ilustração: Michael Cheval |
O suicida ao homicida
Era uma vez...
o sonhador que colhe
berinjelas
na terra das flores murchas
onde vossa miséria é ourives do mundo
então, enquanto a rosa colora de roxo todo ouro impune
lá no alto, no píncaro dos pícaros, onde língua é afiada a facão
lê-se em violetas gigantescas:
ESQUECEU QUE PARA UM SONHO DE VERDADE
SE PERDE A VIDA INTEIRA?
e no instante em que dos olhos desaparece a cor desaparecida nos olhares
a orquídea rega a beleza com o sonho esquecido
é a alma procurando-se entre os destroços
entre a carne, entre os ossos
entre a obscura pálpebra do coração em que a bromélia vasculha os desejos
pois é no útero estéril da ignorância
que se ilumina a grande fertilidade dos tolos
junto da líquida papoula que voa
o seu maldito e delicioso disparo de enganos
assim o lírio oficial chora uma última assinatura
uma última mentira de envelope em seu envelope de mentiras
e ainda persiste este incômodo sinônimo de dor que é a vida
e prospera o transeunte girassol em seu magma púrpura
cortejando a lua num lamaçal de estrelas
Augusta
caminhando pela augusta puta linda e absurda quando a lua infla
no céu é o céu anestesiado da boca na boca
e o canino amortece e o pó é só o pó branco dos olhos ruivos e ruivos demais
no samba da fumaça nos alvéolos e as cervejas rolam
no céu é o céu anestesiado da boca na boca
e o canino amortece e o pó é só o pó branco dos olhos ruivos e ruivos demais
no samba da fumaça nos alvéolos e as cervejas rolam
e os compadres mambos e a augusta nossa la bossa baby
a calçada pequena de gente feliz e bêbada e feliz e feliz
e toda noite te moo no dichavador do meu coração
e enrolo teu glamour decadente em três guardanapos vagabundos
pra tragar fundo a tua aura inteira e teu meio fio
com os compadres chapados enlouquecidos lindos geniais e mais e muito mais
e toda noite te moo no dichavador do meu coração
e enrolo teu glamour decadente em três guardanapos vagabundos
pra tragar fundo a tua aura inteira e teu meio fio
com os compadres chapados enlouquecidos lindos geniais e mais e muito mais
augusta sua puta nossa bruma intensa de pecado e redenção
teu chão pisoteio pisoteamos pistoleiros loucos da madrugada
e vamos porque é inebriante que deve ser
e vamos porque é inebriante que deve ser
e é
e antes era deles amante e glória
agora é nossa e assim e assim
é nossa
augusta cósmica
e antes era deles amante e glória
agora é nossa e assim e assim
é nossa
augusta cósmica
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Ilustração: Michael Cheval |
Haverá um depois depois de nós
nascemos estrela e morreremos buraco negro
e então
já bastante humano
ele confundirá gravidade com egoísmo
e solitário esfriará conosco
no maior de todos os invernos
IBIS REDIBIS NON PERIBIS IN ARMIS
algo de errado está errado em nalgum lugar estranho
em todas as partes em todos os mitos
as espadas cruzam as pedras partem
marés em gritos
os olhares se cruzam como lanças no escuro
dementes rogam diferentes lutos
o sangue se espalha a mente se engaja
tribulam-se almas em neblina e sal
surpresas esperam presentes rotineiros
bocas aflitas emudecem ainda mais
a dor aloja-se nas gerações com medo
talvez sonhos ainda busquem cais
procurando farelos entre migalhas
desvendado cinzas queimadas
e o que foi nada um dia
de repente corrompeu
tateio nos passos do deserto
entre tantos batalhões e exércitos
os vestígios do que ainda resta
das estátuas deportadas
à força esculpidas
em carne e osso
movimentos perdidos alertam
há um presente que chega
de longe
***
no nosso peito bate um órgão muito falso
e no nosso corpo
a defesa
é muito frágil
pele corada mas doentia
sorriso mordo mas rotina
rosto e fadiga já se completam
é tal a distância em seu olhar
o infinito é só uma esperança
que de tão estúpida chega a nos confortar
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Ilustração: Michael Cheval |
Teoria Antropocêntrica das Imagens Enluaradas
bocas movidas à pilha
esperanças queimando em velas de sétimo dia
espirros de suor e peitos de aço
cartas em latim arcaico
sobre castelos de papel líquido
e seus filósofos analfabetos
para-raios no chão e espelhos em espadas
o ar sente-se livre embriagado
a venda de indulgências está novamente na moda
mas agora com passaporte e carimbo
a democracia burguesa é a nova simonia da plebe
sempre foi assim
poeira e deserto flutuando no concreto
religiões complexas e seus lençóis de histeria
estaca aberta no braço
alcança
arde e repudia
está no pântano
no pântano de estranhos
e também na arca
na arca incendiada
parece câncer crescendo em prantos
parece unha calejada
está chorando
vê!
mas não sente nada
enlouquece!
segue lenta e embalsamada
a alma em sua nau
que enfim
ateu em retirada
Nascido no sudoeste do Paraná, Bellé Junior publicou em 2010, de maneira independente, “O sonhador que colhe berinjelas na terra das flores murchas”, com não mais que 300 cópias, as quais vendeu por aí, nas ruas e botecos, para amigos e inimigos. Seu segundo livro, “Trato de Levante” foi publicado pela Editora Patuá em 2014