(ou o martírio íntimo da autoimolação pela chama)
no couro as agruras do mundo lhe cravaram garras inarredáveis
e toda carne já ardia - brasa interna - muito antes do óleo diesel /
na véspera teria decidido "é amanhã meu futuro interrompido" /
e dormiu um sono resoluto, véspera da absoluta renúncia /
sonhou com monges em guerra, mestres rebelados entre si /
confrades vitimados em combates árduos, assassinatos sem fim /
acordado, esperou a noite vir / o ancião da vila o ajudaria
na liturgia do ritual antigo / quando os convidados chegaram
portavam chamas acesas desde suas casas arruinadas /
das guerras não havia sobrado muito, um arremedo de vilarejo /
os exatos mantras entoados, todos sentados em lótus, cada qual
uma única pétala reunida ao miolo de uma flor maior, comunitária /
os cantos seguiram por horas até quase à exaustão / todos
obedecendo a orientação do ancião / a reunião lançada ao transe
de uma só oração, pulsando na noite densa o único coração /
até que param, e num gesto unitário, atiram incenso aceso /
em seu corpo as mandíbulas do incêndio afundam pele adentro /
ossos nervos olhos o próprio nome nublado pelo fogo largo /
toda carne já queima em labaredas, antes mesmo da primeira
centelha, a faísca inicial esteve dentro da boca, na ponta
da língua / era a primeira palavra proferida, dita pela mãe
para a tia, e só revelada a ele na abadia, ao fim do primeiro dia /
há séculos é assim que se inicia a vida útil de qualquer agente
infiltrado cujo único propósito virá a ser, um dia, o mais
absoluto aniquilamento pelo calor que esplende desde sempre
de toda a desilusão que ronda esta alta aposta que é deixar o ventre
*
* * *
PARTE 5
* * *
Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro é Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014).