PARÁBOLAS
I
É da natureza do poeta
sonhar a essência do vento
e soprar na harpa os outros nomes
da pedra e da água.
A grande mãe se inclina
e oferece o vinho santo do seu corpo,
semente e bênção do ventre úmido.
Só tua boca pode receber este mel
e conhecer as liturgias das areias
e saborear o sangue das origens
no cálice que transborda nesta mesa.
II
O espanto dos homens sussurra rapsódias.
As campânulas de fogo se agitam
e deixam apenas vestígios de cinzas
que as chuvas desmancham e apagam.
Há tantos seres numa pessoa.
Um argonauta pode estar
na sombra de um titã.
A lira vai do raio ao rei.
O outro delira.
III
Um homem vaga por abismos.
Sua sombra borda contornos
no espelho do lago da ambição.
O sexo de cristal se move,
graça dos nervos da síntese,
e amamenta os sonhos da amiga
que ascende na colheita dos espinhos.
Do sexo, uma criança brota:
guerreiro das palavras estrangeiras
a oferecer toda sua safra.
Oculta-se na busca do Santo Graal
que repousa no vestíbulo da noite
onde manadas de estrelas
viajam e vagam e morrem.
IV
Enquanto a sombra se enraíza nos rebanhos,
papoulas de fogo fervem no sangue de Dioniso
e uma candeia de narcisos sobe à cabeça
para celebrar os réquiens do adeus.
Incrustadas por brasas aflitas
as fêmeas se enlaçam aos machos
e afloram gerações e gerações
para desfolhar as pedras de Deus.
***
O Galope de Ulisses, antologia poética de José Inácio Vieira de Melo, é a mais nova publicação da Editora Patuá. Para fazer a seleção, organização e prefácio, a Patuá convidou o poeta e ensaísta carioca Igor Fagundes, que escolheu setenta poemas, dos seis livros de JIVM, para comporem a paisagem poética da antologia.
No prefácio, Igor Faz um alentado estudo sobre a obra de JIVM, para o qual deu o título “O cacto das musas”, e dividiu o livro em quatro partes: “Galopar na infância é a minha metafísica”, “No sertão, o princípio do enigma, o galope para dentro de redemoinho”, “Quando o homem chega dentro da criança, o infinito cai e a casa começa” e “Pois a verdade – a verdade verdadeira – é escutar no canto a imensidão”, que são versos retirados de alguns poemas que estão no livro.
Na contracapa, Igor, em um texto síntese, dá a medida certa de O galope de Ulisses: “Reunida a obra de José Inácio Vieira de Melo em um único-múltiplo itinerário, percorremos com o poeta uma viagem de renúncia dos seus lugares prévios de identificação e acomodação; de suspensão do conhecido e familiar, em nome da escuta do desconhecido e silente, de um perigoso canto advindo das sereias sertanejas, rumo ao sem-lugar – sertão – em que o humano se perde e se ganha em meio ao cacto das musas. De uma cronológica a uma ontológica infância, a poesia-vida aí se firma como um bem da terra, uma cultura possível da imensidão, onde cada um conquista a solidão de sua diferença”.
Igor Fagundes é também professor de Filosofia, Estética e Dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de sete livros, coautor de trinta, e organizador de outros três. Doutor em Poética com a tese A incorporação – Poética na encruzilhada, na qual a obra de José Inácio Vieira de Melo comparece como parte de uma dramaturgia mítico-filosófica em que Maria Bethânia, transformada em par do poeta, o conduz a uma saga por exus, pombogiras, erês e orixás, no sentido de desconstruir os discursos metafísicos vigentes em torno do sagrado, levando ao transe poético as interpretações oficiais do pensamento grego e bíblico e, em última instância, o próprio Ocidente.
A obra de José Inácio tem merecido a atenção de grandes nomes da literatura de língua portuguesa – como Ronaldo Correia de Brito, Gonçalo M. Tavares e Salgado Maranhão – e já alcançou considerável reconhecimento de público. E é por conta da sua popularidade, aliada a qualidade de sua poesia, toda perpassada por uma seiva telúrica, que a Patuá publica O galope de Ulisses, sua segunda antologia. A primeira foi publicada em 2011, pelas Edições Galo Branco, inserida na coleção 50 poemas escolhidos pelo autor e contou com apresentação de Affonso Romano de Sant’Anna, André Seffrin e Marco Lucchesi.
José Inácio Vieira de Melo (1968), alagoano radicado na Bahia, é poeta, jornalista e produtor cultural. Publicou os livros Códigos do silêncio (2000), Decifração de abismos (2002), A terceira romaria (2005), A infância do Centauro (2007), Roseiral (2010), Pedra Só (2012) e a antologia 50 poemas escolhidos pelo autor (2011).
Organizou Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004), Sangue Novo – 21 poetas baianos do século XXI (2011) e as agendas Retratos Poéticos do Brasil 2010 (2009) e Retratos Poéticos do Brasil 2013 (2012). Publicou também o livrete Luzeiro (2003) e os cds de poemas A casa dos meus quarenta anos (2008) e Pedra Só (2013).
Participa das antologias Pórtico Antologia Poética I (2003), Sete Cantares de Amigos (2003) e Roteiro da poesia brasileira – Anos 2000 (2009). No exterior, participa das antologias Voix croisées: Brésil-France (Marselha, 2006), Impressioni d’Italia – Piccola antologia di poesia in portoghese con traduzione a fronte (Napoli, 2011), En la otra orilla del silencio – Antologia de poetas brasileños contemporáneos (Cidade do México, 2012), Traversée d’océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Paris, 2012), A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo, 2013) e Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas, 2013).
Coordenador e curador de vários eventos literários, como o Porto da Poesia, na 7ª Bienal do Livro da Bahia (2005), a Praça de Poesia e Cordel, na 9ª, 10ª e 11ª Bienal do Livro da Bahia (2009, 2011, 2013), em Salvador, e o Cabaré Literário, na I Feira Literária Ler Amado, em Ilhéus (2012), assim como os projetos A Voz do Poeta (2001) e Poesia na Boca da Noite (2004 a 2007), ambos em Salvador, e Travessia das Palavras (2009 e 2010), em Jequié. Desde 2009 é curador do projeto Uma Prosa Sobre Versos, na cidade de Maracás, no Vale do Jiquiriçá. Tem poemas traduzidos para os seguintes idiomas: espanhol, finlandês, francês, inglês e italiano. Foi coeditor da revista de arte, crítica e literatura Iararana, de 2004 a 2008.
Fotografia: Ricardo Prado