11 POEMAS DE "SE LÁ NO SOL" (7Letras, 2005)
Renascimento
Criei-me santa,
mas sou perversa,
galho de mil pontas.
Lei da ação e da relação
Minha vida passou por cima da tua
rapidamenterolo-compressorroeur
uiuabriuatropeloumorreuradicaleu
mas quem ficou estralhaçada fui eu
Das flores que se nascem
E se arrancam... roubadas
E se dão... usadas
E se jogam
No mesmo jardim
Gato lambendo a pata
passando no rosto
orelha ao avesso
morde consecutivamente a patinha
lambe a barriga
pequena língua rosa áspera
brilhantes pelos macios úmidos
Venha cá...
dê-me seu abraço quente...
Mas vai embora,
Quer dormir, descansar,
distante de mim.
A casa
Enfim encontro
aquela felicidade
no refúgio da casa
de plantas verdes
e gatos esparramados,
coisas banais,
mas de verdade.
Como um pássaro discerne
entre pular num galho ou cair no chão?
entre bicar um alpiste ou deixar-se caça?
Então posso escolher
deitar ao sol da manhã
de barriga vazia
e mente tranquila,
alisar uma cabecinha
sem compromisso
de ser boazinha.
Corro pra debaixo da saia da mamãe.
Papai, contente vou-o beijar
e a casa vai desaparecendo na esquina.
Era
Ele imaginava o terrível drama que se desenrolava perpetuamente no universo, e o seu coração estava repleto de piedade. Totalmente afligido pelos inúmeros males que haviam padecido os que viveram antes dele, vergando sob o peso desses vãos esforços acumulados no infinito dos tempos, o zartog Sofr-Aï-Sr adquiria lentamente, dolorosamente, a íntima convicção da eterna renovação das coisas.
Júlio Verne (O Eterno Adão)
Sob meus pés
circulam gentes
de outras eras
afundadas na terra
que já foi mar.
Em minha mente
segredam sombras
distantes montanhas,
mulheres-moças
reacendem num terral.
Fundos de oceano
- baú de viração.
Sou fóssil sou dócil
mas viro carvão
se solta no ar
Que venham as enchentes
os barros me encerrem
eu quero afundar
- caixa de metal
(me encontrem mais pra frente)
- garrafa estrelada,
eu vou ficar luz.
Se continua chovendo
nem cresce mais verde,
aos poucos se afoga.
Rio doce me abrace
e me solte noutro lugar
Viagem
No movimento da montanha azul
Seu rosto embebido em sombra e luz
Pude enxergá-los tão de perto, desfocados
O vento correndo liso pelo seu cabelo
Na montanha mausoléu
Naquele pontinho brilhante
A morada do ermitão
Aquele outro, imóvel
É a casa do pastor
Esses dois aqui
Não me enganam
Se escondem de mim
Quero saber o que tanto olham
Na noite de vidro
Se chover a montanha se desfaz
Em água nos meus olhos
No movimento da montanha marrom
Meus cabelos brincando com o ar
Vi seus olhos brancos de ternura
O calor quente do teu abraço me fez criança
Tive vontade de virar música
E entrar no teu ouvido
Sem açúcar, café
Naquela mesa de canto
um menino magrinho
sentado, quieto, de esguelha
toma seu chazinho gelado
enquanto passeia o canudo
ponderando as leis dos fluidos.
Aquele ali, caso não saibam,
vampiro júnior, sapato social,
camiseta preta, camisa de lã por cima,
ar despreocupado e ausente,
tem o mundo por dentro dos dentes.
E caso o encontrem, carinha lisa
de 17 aninhos (mas não tem)
e queiram sentar-se à mesa,
não se façam de rogados,
um cafezinho, cappuccino,
mandem lembranças minhas
que o menino é sorridente
e estou com uma baita saudade dele...
Bornel
As esquinas
não tem bares sujos
de homens perdidos.
Os assassinos são tratados
com tamanha piedade
que já se esqueceram
de um dia terem matado.
As leis estão nas mãos e nas cabeças,
consuetudinárias.
É um país às avessas
das modernas democracias.
Que os jornais não o publique
em caderno de mil folhas
com extravagâncias de mapas
gráficos e fotos coloridas.
Bornel é uma ilha afastada,
perdida demais para ser achada.
América
É preciso amar rapidamente
ler todos os livros interessantes
pintar os quadros com urgência
transformar toda farinha em pão
registrar todos os sentimentos
antes que as cabeças sejam cortadas.
Se lá no sol...
Deitada numa roda macia de luz,
vou tocar a lira perdida dos deuses.
Não me venha dizer que é sonho, mero engano,
porque a terra subiu até o cimo branco,
já se entranhou nas nuvens, não para de crescer.
Se lá no sol me faço
Lá, me rendo, se sou
* * *
Elisa Andrade Buzzo (São Paulo, 1981). É formada em jornalismo pela ECA-USP. Estreou na literatura com Se lá no sol (2005), sendo seu último livro de poesias Vário som (2012 [leia poemas aqui]), finalista do Prêmio Jabuti 2013 na categoria poesia. Participou das antologias Poesia do dia: poetas de hoje para leitores de agora, Roteiro da poesia brasileira: anos 2000, Hiperconexões: realidade expandida v. I (leia aqui) e II, É que os hussardos chegam hoje, dentre outras publicações. Foi coeditora da revista de literatura e artes visuais Mininas. Publicou a antologia de crônicas Reforma na Paulista e um coração pisado (Oitava Rima, 2013) e desde 2006 mantém uma coluna dedicada à crônica na revista eletrônica Digestivo Cultural.