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3 poemas de Marcos Siscar

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Ilustração: Ula Kapala


JUNHO


alguns voltam às ruas outros saíram agora
cada um se esfrega como pode
mas as bandeiras antes portais da situação
hoje são pedágios que não queremos mais pagar
o rei morreu viva o transporte! o transporte é livre!
revolutions are going to be easier to start google said
but harder to finish a todos doravante
a carona do coletivo a cada um entretanto
o estorvo de tirar a própria foto



CAUSA PERDIDA

I.

Um inseto queimado de tanta luz se move na lápide branca da sacada. Observo seus gestos, tão lentos, tão brancos. Passo meus dias a observá-lo. O sol da manhã nos ilumina, tudo em torno está banhado de fosforescência tépida. Nenhum suor, nenhum vento, nenhuma ameaça de tempestade. Só o inseto se contorce, frágil, insignificante, sobre o piso. Alguém me chama, de longe. A panela está no fogo, mas a urgência se perdeu. O caminho até aqui é longo, só o inseto agoniza, sem drama, sem fome, sem símbolo, protegido pela minha atenção e pela minha diligência. Olho para o inseto indefinidamente. Não há desespero, nem esperança. Apenas sua agonia nos mantém vivos. O rastro de suas entranhas fosforescentes. Sua lenta mumificação solar. Quando a gata, predadora de causas perdidas, perigosamente se aproxima, encaro-a com faíscas, cheio de alegria, arrepiado por uma mal contida feracidade.



II.

Um inseto agoniza ao lado de minha mesa. Eu mesmo o envenenei por legítima defesa, por precaução ou talvez por hábito. Não quero encará-lo, agora, enquanto agita as asas, em decúbito dorsal. Há algo de infinitamente indecente na morte. Desvio o rosto e, se fumasse, acenderia um cigarro afetando indiferença. Mas ele se agita desesperadamente. Qual a dose certa de veneno para nossa tranquilidade? Tento virar a página de um livro, procurar um objeto perdido no outro canto da sala, mas do meio do silêncio, de tempos em tempos, ele vibra as asas velozmente. Como se me chamasse. Seguramente me chama, usando o estertor da sua espécie. Talvez sofra. A morte do outro demora, mas me chamando já está, bem aqui, onde eu mesmo moro. Observo seus gestos escuros. Hesito entre a comunhão das espécies e o indulto da indenidade. Chego mais perto, fico agitado. O sol da tarde nos castiga, o ar está parado, minha cabeça lateja inalando um resto de veneno. O inseto movimenta suas patas, suas asas, duas a duas. O dia não termina nunca. Nu como ele, em sua piscina de sol, vou me queimando de tanta luz.



MARCOS SISCARé poeta, tradutor e ensaísta. Publicou, entre outros, os livros de poesia Metade da Arte (2003), O Roubo do Silêncio(2006), Interior via Satélite (2010) e Cadê uma Coisa (2012). Tem livros traduzidos e publicados na Argentina, na França e na Espanha. Participa de antologias nacionais e internacionais (Argentina, EUA, Portugal, França, Espanha, Bélgica, Alemanha, Hungria). Traduziu autores como Michel Deguy e Jacques Roubaud. É professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, tendo publicado, entre outros, Poesia e Crise (2010) e Jacques Derrida : literatura, política e tradução (2013).


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