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"CORPO DE FESTIM", O DE “HUMANI CORPORIS FABRICA” DE ALEXANDRE GUARNIERI

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por W.J.Solha



Por coincidência, fiz a resenha, há poucos dias, do novo livro de Biu Ramos, ERRE BALADA, categoria “lombra”, da editora Beleléu, em que o dito R. morre “com uma faca nas entrelinhas”, pelo que se lê no seu epitáfio isolado na última página:

Aqui jaz Digitus Erre Linhares.
Cap. 1, pag 13  –    cap. 25, pag. 98.
Sua vida foi um livro aberto.



Guarnieri escreve na página 16 de Corpo de Festim, em sangue | suor / e celulose (ii):
o sal que cada talho
encontra, arde, demora a curar
a chaga criada por cada frase exata /
todo golpe, pancada, cada agressão
que se aplique, fulgor, alarido de sílabas,
busca sobrepujar no parágrafo o que tinja
ou apenas preencha a claridade da página,
que seu terreno, até então anêmico,
esteja repleto / são números e letras
de chumbo o suor de sua pele impressa.




A fusão corpo-livro é corroborada na página 24, em \\ livro aberto //:

de pele é revestido o corpo, tecido
vivo \ no livro, chama-se capa
( o couro sob o título ) \ abri-lo:
gráfico grito \

Bem, pergunta-se: por que isso, em Alexandre e Biu? Porque não querem o leitor ofuscado pela ilusão literária. Buscam  o “distanciamento brechtiano”.

Wikipédia:
O efeito de estranhamento, distanciamento foi prática comum no teatro do início do século XX na Rússia e na Alemanha, principalmente entre os encenadores Erwin Piscator e Meierhold, assim como nas representações do agit-prop soviético. Este conceito se torna conhecido mundialmente a partir dos trabalhos teóricos de Bertolt Brechtseu objetivo é tornar claro ao espectador que ele está frente a uma obra de arte, de que a representação teatral é uma ilusão.

Bertold Brecht

Talvez nem fosse necessário. O título já é bastante eloquente. Google de novo:

Significado de Festim
s.m. Festa particular.
Refeição de pompa, banquete suntuoso.
Cartucho sem o projétil ou bala para tiro simulado.

“Banquete suntuoso”. Corpo de Festim é um banquete suntuoso, sim, como outro livro do poeta, que, aliás, teve na capa a mesma cena de Metrópólis ( filme que gira em torno de um robô ) de que me servi no  segundo de meus três poemas longos:


Quando aos cartuchos sem chumbo, veja como apareci em 1969 – pistoleiro de aluguel - no meu primeiro filme como ator:



Logo de cara dou vários disparos de meu 38  em minha vítima, que cai morta sobre um tabuleiro de gamão. Na vida real, porém, desviei minhas balas de festim – por um lance de intuição -  numa velha porta, milímetros à esquerda,  e todo mundo se assombrou, em seguida, ao vê-la com cinco buracos feitos pela cera.  Assim, fulminantes, são os versos de Guarnieri. Porque têm muita beleza e força.

Seguindo uma mesma linha – que vem de Casa das Máquinas – o corpo humano, de CORPO DE FESTIM, é – como vimos – literatura... e máquina, provando que é possível assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Outra coincidência: acabo de adaptar para teatro o romanceamento do Édipo Rei,  que é parte de minha História Universal da Angústia ( Bertrand Brasil,  2005 ), onde se lê isto:

ÉDIPO – (...)  Sei que somos todos robôs da trilionésima trigésima primeira geração, o modelo R-3.000.031,  e que nos autorreproduzimos levados pelo “amor”. Com aparente autonomia, acabamos acreditando até que temos alma – eterna – e que somos livres. Porém.... quanta coisa desconhecemos de nossa programação e funcionamento, inclusive os labirintos de nossa mente!
Isso não é nenhuma novidade: Hamlet já diz sobre si mesmo, em sua tragédia, ato II, cena II:   this machine.

Hamlet Machine é uma obra do dramaturgo e escritor Heiner Muller, um dos grandes nomes do teatro alemão. Foi escrita em 1977 e inspirada em Hamlet, de William Shakespeare.1 Na peça aparecem as catástrofes da história e da cultura ocidental, além da crise do artista e intelectual, dividido entre o desejo de se transformar em uma máquina sem dor ou pensamentos e a necessidade de ser um historiador desse tempo conturbado do século XX.2




O médico francês Julien Offray La Mettrie, em seu ensaio L’Homme-Machine [O Homem-máquina], desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano, não só através do estudo de seu próprio corpo, mas também de sua alma. A partir de seus estudos sobre ciência natural e anatomia, La Mettrie defendeu sua tese especialmente ousada para a época, dominada pelo pensamento cristão, de que o corpo humano é uma máquina que funciona mediante uma mecânica metabólica.

Novidade ou não, é o modo de meu Édipo entender como pode haver um destino mecânico, fatal, do qual não consegue se livrar. É o modo de Guarnieri fazer uma novíssima leitura do ser humano, pondo o corpo  como objeto de grande beleza,  como a que as máquinas, resultado de uma lógica funcional, sempre têm: 


Beleza. Daí que a todo momento ele reinventa a poética e a estética, enquanto disseca ( ou monta ) o Corpo de Festim, como se o fizesse com lápis de ponta extremamente fina:


( na ampulheta viva /
sangue é tempo )
(...)
com endereço fixo, todo homem tem o corpo como o próprio logradouro.

(...)
( Do crânio ) escapam-lhe tantos juízos – como se fugissem pássaros

(...)
acompanha o corpo este túnel obscuro,
dúbio / lúbrico, sujo / úmido, ao
longo da coluna – quando ereto, sua
verticalidade se sujeita à força da
gravidade e quando não, há tão somente
– silenciosa – a peristalse;

Corpo de Festim – “Antropoemas”, como se define -  é resultado de toda a cultura ocidental. Fatal que gere comentários eruditos como os de Mauro Gama e Jorge Elias, que encerram o livro, E nele mesmo rolam nomes como – de repente - os de Botero e Giacometti pra falar de corpos que vão de um extremo a outro, em termos de volume,

ou da obra de Christo, para significar “pele”.


O final é antológico. Como um grande monólogo, em  que ele diz coisas como
EU fundo o poema
no qual me refugio sozinho (dr. jekyll ou mr. hyde),

(...)

Frankenstein (criador e criatura),  sou o autor deste poema (onde o
excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o
prisioneiro solitário desta cela simétrica a 35 graus centígrados

Que dizer de Corpo de Festim, depois disso?

Guarnieri me lembra novamente o Biu Ramos:

(...)
desisto de permanecer no cio desse rossio, nesse recinto sonoro de
letras ciciosas e me esquivo, insidioso, e me livro de encontrá-lo do
outro lado, no virar da página, na linha de chegada, me ausento,
austero e frígido, da cópula contigo, meu leitor (o rei que deponho
do trono da alteridade), eu me livro de você.

eu me livro de você.

OK, Ok, eu já estava de saída, mesmo.



*    *    *





Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941), é um escritor, cordelista e artista plástico brasileiro (radicado em João Pessoa, Paraíba, desde 1962). W. J. Solha tem passagens também pelo teatro e pelo cinema. É autor, entre outros, da trilogia de poemas longos "Trigal com Corvos" (2004), "Marco do Mundo" (2012) e "Esse é o Homem" (2013). Leia mais sobre o autor aqui e aqui.








Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro Corpo de Festim (Confraria do Vento) será lançado em breve.


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