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Um conto de Roberto Menezes

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Gritos pela Janela

Virtudes mora no andar de cima. Escondida dentro de si. Raramente ouvi a voz dessa moça. De quando em quando a encontro no elevador. Apesar de ela me olhar de uma maneira simpática e apresentável, quando ela me dá as costas, o espelho denuncia que nada está bem. 
Nas vezes raras em que ouvi falar de Virtudes, foi através de seu marido, que ao contrário dela, sobe os oitenta e cinco andares do elevador todo falador. Diz ele que sua família saiu de um estado deplorável de pobreza e vivem agora felizes a menos de dois andares da cobertura. Nunca perguntei a ele seu nome, não me interessa. Quando os dois andam juntos, ele a abraça ou a pega na mão de um jeito que me deixa confuso. É patente sua paixão por ela, mas não está clara a dela por ele. Tem vez que eu acho que sim, tem vez que eu acho que não. Assim como ela tenta ou não deixar transparecer, também cultivo uma espécie de admiração, inveja e ódio por aquele homem.
Ontem acordei ao belo som de porcelana quebrando. Era madrugada ainda, o sol espantado amanhecia, e Virtudes, na sua milésima noite mal dormida, transfigurava seu descontentamento com violência sobre os objetos inanimados. Que voz linda tem Virtudes! Fiz meu café e imaginei o que ocorria na insurreição matutina. 
Naquela hora, nem por um minuto procurei saber a razão de ela estar fazendo aquele ato. Não demonizei o marido que tanto admiro, invejo e odeio. Não salguei com meus pontos de vistas a reação de Virturdes. Virtudes reagia. E regia o quebra-quebra primorosamente. Fechei os olhos. A acústica midiática do meu prédio fomentou minha imaginação. 
Nunca saberei o que aconteceu de verdade no apartamento sobre o meu. Imaginei Virtudes transvestida em dançarina, arremessando tudo na parede. Uma gota d’água se descobre bailarina ao cair na chapa quente. Virtudes almejava o caos. Por aquele momento, o caos deveria ser a única coisa que ela desejava urdir. 
E realmente não fui o único a ouvir. O prédio espalhou o grito da moça por andares, do subterrâneo às piscinas da cobertura, tal qual pétalas, violando os ouvidos. E de todos os andares, brotaram gritos tão similares e tão diferentes. Dolores ecoou suas dores. Prazeres acusou que nada estava bem. Luz começou a piscar as luzes do seu closet. Esperanza e Constanza cantaram juntas.
A gritaria avançou pela tarde. E quando a noite chegou, Virtudes liderou o arremesso de coisas pela janela. Tristes e patéticos objetos inanimados, frutos de frustrações furtadas com algum dinheiro. Dinheiro vai, dinheiro cai. Cadernos, roupas, sonhos rasgados voando e transmutando-se em mera alegoria; que mesmo assim, eu, homem burro, não consegui entender.
Ardia meu prédio de um calor que não era fogo, que não sei se serviu ou se foi vão. Os gritos cansaram, os braços desistiram de arremessar de cada quarto o que lhes incomodava. Todos então dormimos, elas nas suas fronteiras, sarjetas devastadas; eu, no meu mesmo lugar de sempre. 
Torço pra que hoje elas repitam suas gritarias. Que sejam mais exageradas do que ontem. Talvez eu tenha coragem e pule junto com esses sonhos a se esfarelar.     



Roberto Menezes é paraibano nascido em 1978. Doutor em Física e professor da Universidade Federal da Paraíba. Faz parte do Clube do Conto da Paraíba e foi membro fundador do Núcleo Literário Caixa Baixa. Tem quatro livros publicados: Pirilampos Cegos (romance), O Gosto Amargo de Qualquer Coisa (romance), Despoemas (contos) e Palavras que devoram lágrimas (romance). Foi vencedor das duas edições do Edital Novos Escritos da Prefeitura Municipal de João Pessoa (2007 e 2008) e do Prêmio José Lins do Rego da Funesc do Governo do Estado da Paraíba (2011).

Ilustração: Mulher em vermelhor, Di Cavalcanti

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