Quem teceu minhas asas foi Finória
Uma velha fiandeira lá de trás
Com rosário na mão, fiava em paz
No sopro duma aragem, foi embora
Era noite prateada igual agora
Os anjinhos do céu cantando atrás
A velha me estendeu caraminguás
Eu me acheguei da minha trajetória
Seu chão brotava um brejo de memória
Cada ruga um sem fim de funerais
Mãos trêmulas mas inda assim capaz
Olhos vivos de gente que não chora
Finória me piscou, toda simplória
E logo me mostrou suas credenciais
Farejou minha alma de ancestrais
Como se fosse agora a minha hora
Então misericórdia, ouça esta história
Que conto a Deus e conto a Satanás
Os anjos prateados são corais
Que conduzem na glória essa oratória
* * *
E é hora de mudar pra outra cadência
que o tempo já me puxa o pé pra dança
A velha fiandeira canta e entrança
um fio, só um... e reza uma incelência
Fia, Finória, a minha existência
Desliza a linha longe onde ela alcança
Cobre um manto em meu cesto de criança
Me faz velhice, faz minha inocência
Em silêncio ela toma minha essência
e a conserva no vão de uma cabaça
Pisca pros anjos, quietos na fumaça
Envergados no chão da reverência
E eu ali, penitente na obediência
Uma encomenda feita na confiança
De garantia, um fio que sempre avança
E a fé na sua ignorância, sua ciência
Indo foi na firmeza da experiência
E Finória já finda o nó da trança
que arrasta minha asa na lembrança
daquela noite agora em sua ausência
* * *
Numa asa a saudade, na outra o sonho
tecido com retalhos do infinito
De repente o silêncio solta um grito
A hora grande chega ao redemoinho
É pra momentos desse, eu suponho
Que o homem inventou sagrado rito
Pra chegar de chapéu, muito distinto
De palavra na mão, seu patrimônio
E ele diz: “Não sou santo nem demônio
Só mais um mensageiro do bendito
Ou quem faz o grotesco ser bonito
Tornando familiar o que era estranho”
Quando ele olha pro céu, meio risonho
Dedo benzido em sangue de cabrito
Risca no ar um símbolo esquisito
Que representa tudo o que eu disponho
Vejo a Lua girando igual engenho
Pro ralo da noite a alma vai se esvaindo
Finória então me entrega o meu pedido:
Um par de asas boas que arrepanho
* * *
É quando o homem some na fumaça
Muitos brejos nos dedos, foi com pressa
A velha fiandeira cruza a reza
e me sopra na cara uma cachaça
Livre para queimar a própria brasa
ou ter fé no cumprir de uma promessa
O anjo balança e pesa essa leveza
e diz que o meu caminho é a fé que traça
Encho a mão com palavras, ergo a taça
para beber a todos nessa mesa
Surge um raio de sol, que me atravessa
transparecendo tudo igual vidraça
Só me resta aceitar a luz da graça
Aceitar minha própria natureza
Sumir no rodopio da correnteza
e me entregar ao tempo, o fio que vaza
Bem mais leve que as penas desta asa
Eu perco meus pés, braços e cabeça
Minha alma ajoelha e se confessa
Autor dos livros Ensaio do esquecimento (Patuá, 2014) e Coisa-feita (Patuá, 2012), Lucas Puntel Carrasco nasceu em Rio Claro (SP), no Natal de 1979. Cresceu no interior, entre Campinas, Ribeirão Preto e sua cidade natal. Vive em São Paulo. Premiado no concurso de haicais da Companhia das Letras em 2013, também lançou os infanto juvenis Ingoma, o menino e o tambor: a tradição do batuque de umbigada (2010) e Pindá, a menina do mar: sonetos para 1 infância caiçara (prêmio ProAC 2007). Editor e pesquisador de PretoBrás: canções e histórias de Itamar Assumpção (2006), o autor também colabora nas revistas Germina Literatura, Cinema Caipira, Revista do Arquivo e no Jornal Cidade.