Exílio
I.
Eu quase sorri
durante a noite
quando as paredes
de outro quarto gemiam
Minha cama
maiores as pernas
que estico sobre
o esmaecer das
madrugadas
dá sinais de desconforto
Entre as traças há rodizio
Ora atacam minha pele
noutra são lembranças
E desgosto,
entre os lençóis
o que me causam
Às vezes o homem se exila
e o corpo o abandona, grita
a matéria viva que nele reside
alma, faísca, sopro divino
Nada importa
enquanto
a dor for a mesma
II.
Entre as horas que abraçam a madrugada
três ou quatro são as piores, pois nem sonho
nem acordo, sonâmbulo sem sono, dando
voltas dentro de mim, como quem se perde
e a estrada é cheia de curvas,
as lembranças se debruçam
entre o que vivi e o que se quis
Espero pelo sol, vejo as flores da varanda
Não cresceram nada desde que as reguei
cinco minutos antes
Estavam ali na outra noite?
Como coisas que achamos
entre remendos de memória
deito as costas sobre o peso do tempo
III.
O Sol se agacha entre as primeiras nuvens
meus olhos sofrem imersos em dúvidas
sobre o que fazer nas próximas horas
Olhos abertos procurando o centro
das imagens, sombras, pessoas,
Quando não se dorme
a porta
que divide os mundos se abre
espíritos amorfos vagueiam
vacilantes entre o aparecer
num segundo e o sumir no espaço
Aperto os olhos, o bolso
o estômago me aperta
estrangeiro de mim mesmo
Levanto
É tempo de buscar a fé
meu alimento
Segredaria
Durante a noite
o sol se esconde
No peito dos homens
aquece o sangue
expande a alma
Mas continua
segredo
da madrugada
Beijo de luz
Descubro
longe de casa
que o Sol não é igual
àquele que reside
nas fundas memórias
da minha infância
O beijo de luz,
passado a limpo,
queima mais do que
aquece
Engrenagem
I.
Levanta-se
e num giro
põe-se ao banho
que dura menos
que o cair da água
escova os dentes
enquanto come
não tem tempo
a perder
e corre,
antes que passe
o ônibus – se vier lotado
não é novidade
crachá, macacão, os óculos
ligar a máquina e fazer parte
da engrenagem
II.
a máquina consome o dia
a fábrica dilacera o homem
as peças se copiam numa
iníqua igualdade
o suor que
percorre o corpo
não paga o sangue
que pinga
em lágrimas que se perdem
hora extra
as contas pedem
o chefe exige
quem não quiser
o caminho
é sabido
sua humanidade escorre
chega em casa
todos dormem
banho, a cama gelada
o sono que o consome
mas nada de descansar a alma
A máquina
Pensa em sabotar a máquina
afrouxar seus parafusos,
romper as correias que unem
as partes,
estourar engrenagens
Mas no caminho o pegam
(ou pagam?)
logo aparece nas assembleias,
quer ser deputado, presidente
forma sua claque,
conta votos como
quem separa garrafas
Eleito,
não esquece da máquina
agora a opera
impedindo que outros
queiram-na por fim
Quando estiver preparado
Exila-se longe do corpo
a alma que busca consolo
fugindo das dores, saltando
por sobre o abismo de cores
que o devolvem ao passado
Exila-se, não somente da cidade
e do povo que o fizeram homem
mas das sombras que o perseguem
e assaltam sua memória,
ferindo-o mais que a própria morte
Exila-se
e quando estiver pronto
voltará a vestir suas roupas
será chamado pelo nome
com que foi registrado,
morará entre os seus
novamente
terá voz, será corpo
que se move à sua vontade
* * *
Marcelo Adifa nasceu em Sorocaba, interior paulista, em 1979. Como engenheiro é especialista em gestão de processos e segurança do trabalho, além de ser dos autores mais publicados no Brasil em sua área de atuação. Paralelamente à carreira de engenheiro é letrista e músico, com parcerias com diversos ícones da MPB, e também, poeta e romancista. Foi ganhador do Mapa Cultural Paulista, um dos principais prêmios artísticos do Brasil, em três ocasiões, um em literatura e duas em música. Os poemas publicados nessa edição fazem parte do livro Exílio, lançado pela Editora Penalux em janeiro de 2015.