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Trato do Levante - XIII - Junior Bellé

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Fotografia: Aline Lata 


XIII.

[o tempo é um velocista
e hoje me sinto velho demais para acelerar a vida
ou exceder a morte
cronometrando-me neste tiquetaquear
e por alguns benditos e rápidos segundos
vencer os ponteiros da história

tudo que preciso neste momento
é lamber a boceta de valentina
e com seu gozo úmido e doce
já na ponta de minha língua
selar o último baseado
no salmo noventa e um
e enrolar este agora no versículo sete

enfim acender os céus na lonjura restante
que incendeia com a labareda fugaz
da nossa juventude passageira
ardeu-nos pelas lembranças desfeitas
até finalmente apagar-nos
no jamais

valentina estava calada
quase imóvel
mas ofegante com aqueles ondados e suados
cabelos negros
esparramados em meu peito
ainda mais ofegante

em breve o sol virá
esbofetear-nos a cara
sabemos que não haverá chance
será o mundo inteiro contra dois
por isso, a sós
nas sombras de lençóis tão conhecidos
até o impossível
escondíamo-nos dele

puxei na primeira névoa do baseado
o poente orgasmo de valentina
queimava entre pele e unha
a densa neblina
ao redor da língua ia dentro de mim
assim como há pouco fui
dentro dela

lá fora tudo é a mesma segunda-feira
a mesma queixa berrada
por ais sem paixão
mas não aqui
não debaixo dos cachos de Valentina
não enquanto o relógio arma em silêncio
seu bote infeliz em nosso silêncio

sussurrei com a brisa entre os alvéolos
“meu amor”
e passei depois do segundo pega
como acordamos há tempos
em nosso trato
de enredadeiras sílabas
 mas com o baseado ainda entre meus dedos
o enlaçou com os lábios
e pitou chorando, mansa
valentina

é duro resignar os planos
à triste ciranda capitalista
mas juramos nunca nos ajoelharmos
diante da vida
nem com a vida adiante
nem mesmo quando ela reacender
outra e outra vez
os motores sanguinários
 de sua imparável máquina
de moer sonhos

pois quero acreditar que ela também acredita
que aqui
em nossa utopia
de alguma forma
encontraremos o caminho certo juntos
e parecia segura disso
quando tragou com voracidade
uma lufada de esperança
e segurou meu rosto próximo ao seu
para cochichar das negras tormentas
e assoprar para longe as nuvens escuras
que nos impedem de ver
a fumaça bailar a poesia da revolução
até minha boca
de barricadas

o relógio, de repente, gritou tão desesperado
que lhe rompi as horas
despedaçadas na parede
por onde os primeiros raios avançavam
indiferentes
pelos desprotegidos flancos do quarto
a fim de cercar-nos à ribeira da cama

valentina aconchega-se em meu pescoço
e os observa sem medo
do alto do nosso fronte
morde, delicada, meu queixo
respira, sem pressa, e pergunta:
“o que você faria
por cinco minutos mais
de eternidade?”



Poema de Trato do Levante (Editora Patuá, 2014).



Nascido no sudoeste do Paraná, Bellé Junior  publicou em 2010, de maneira independente, “O sonhador que colhe berinjelas na terra das flores murchas”, com não mais que 300 cópias, as quais vendeu por aí, nas ruas e botecos, para amigos e inimigos. Seu segundo livro, “Trato de Levante” foi publicado pela editora Patuá em 2014. Boa parte da obra foi escrita em 2013, durante duas residências artísticas em Yaddo Artists Colony e Art Farm Nebraska. Se você procurar bem, ainda acha o “Balaclavas & Os Profetas do Caos”, sua primeira obra, um livro reportagem publicado pela Livro Novo também em 2010. 

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