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05 poemas de Flavio Caamaña

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eu não tenho amor para dar
eu tenho pasta de dente breu
tenho mertiolate talco perfumado
papel ofício e almaço tenho colírio
um dicionário aurélio desconfiado

eu não tenho amor guardado
tenho canetas falhas remédios
vencidos guardanapos roídos
nas pontas pratos sujos na pia
um cd da billie holiday da silva

eu não tenho amor para emprestar
deixei consignado numa feira livre
doei para o mendigo que não mais
voltou com a xícara de arroz ficou
esquecido no banco da topique lotada

eu não tenho amor para investir
a inflação comeu o gato comeu
o diabo comeu com o pão amassado
minha mãe comeu com farinha seca
roubaram com a carteira de identidade

***

a esta hora da noite qualquer demônio
acredita em milagres revezam-se as freiras
no feitio justo e sofrido de assar a mais feia hóstia do mundo
quebram-se as taças só as compridas as delgadas
a esta hora da noite qualquer demônio
empresta amor e vício a qualquer condenado

como devo cremar o destino quando o destino
cremado evoca vácuo qualquer coisa qualquer
coito requer mais calor requer um por acaso
que a tesoura se remoa fingida entre as fitas
e o alimento gozoso preso aos dentes

como devo apagar um fogo se é tolo o talo
arriscar-me num frio a barriga após um desastre
se não for alguém que depois de outro alguém
chegar no mais nefasto dos princípios
adentrar no impacto da mera coincidência
afastar o corpo para desatar os nós

***

estou pensando em fissuras em inconstâncias
sobre como perder um filho na antemanhã
estou podando as rosas gestantes
o colírio que venceu desde janeiro
e até quando este ruído nos olhos
pesando uma tonelada
de ignorâncias

bruno é ateu mas é um ateu bonzinho
bruno duvida de deus pensativo
bebe água dorme acorda dia após dia
seu corpo que já encara o oxigênio
deverá estar envelhecido daqui a alguns anos
ou durará uma eternidade a juventude
ou encontrará no inferno a felicidade
ou abrirá a porta desculpando a expressão
ou escolherá apaixonar-se quando a paixão
mastiga um deus redimindo os seus sonhos

estou pensando em articulações inflamadas
alguém aprenderá a morrer hoje e morreu ontem
alguém nascerá amanhã e já vive desde sempre

bruno nem começou o jogo e já quer o prêmio
encontrou uma vida submersa no pulso de um morto

***

minha mão adormecida é um coquetel de letras
minha boca umectante sobre a telha
mel de abelha mel de cobiça e desapreço
que cada coisa caiba sem rodeios
que cada alheio seja somente meu
mel de destempero

como servir à mesa sem dobrar o seio
tatuar no peito uma lua foda acesa
um biombo de quatro folhas rabiscadas

até coçar a íngua mel de não querer
um colar de pedras vesgas
os meus dedos rasurados na surpresa
de um instante bastardo mel ingrato
desperdiçado no desalinho dos arreios
mel cantarolado

e eu mesmo sem saber um leviano
estridulando ao sopro das canetas
tateio pelos cômodos mel de pólvoras
mel de atrito injetado na veia
e na incerteza da pobre certeza
agora e sempre um minuto seja
mel de amanhecer

***

parece que a tua voz é um osso
pousado sobre a retina flácida
de um falar de anteparos um pestanejar
peneirando o incauto e ardido

parece que a tua voz é uma laçada
de vespas uma farra de asas um batuque
perplexo e pulsante uma ferrugem
ignorada uma tumba sem data

quando tudo é contido e perfurável
quando o sal está amarrado na língua
quando à força tudo é amaríssimo
quando o céu muito raso vaza rios

é essa alga curvando a espuma na borda
um sol violentando numa tarde sombreada
um jardim parece que a tua voz sangra
uma árvore enraizada na boca de um fosso




FLAVIO CAAMAÑA nasceu em Tamboril, Ceará, residente atualmente em Fortaleza onde trabalha como servidor público. Primeiro Lugar no XVI Prêmio Estadual Ideal De Literatura, Menção Honrosa no IV Prêmio Nacional Juvenal Galeno. Participou da coletânea Unifor 2011.

Ilustração: Boy's Head, de Lucien Freud.


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