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3 POEMAS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

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infância


era num tempo em que, à noite, as estrelas tomavam conta do céu como um tapete
gigantesco
meu avô tinha uma fazenda, e ele me deu de aniversário um cavalo e uma sela
o cavalo se chamava (eu dei o nome) pégaso, e era preto
não completamente preto, na verdade, um pouco amarronzado, mas eu o
queria preto, e via preto, sabendo (sem no entanto admitir) que ele era amarronzado e
naquele tempo, à noite, as estrelas tomavam conta do céu como um tapete gigantesco
e dormir na fazenda de meu avô, naquela casa de piso de tábuas largas
e a varanda com vasos e trepadeiras e vista para os eucaliptos no horizonte
e o pomar e as casas de marimbondos
e o cheiro dos copos de uísque e das porções de queijo gorgonzola de meu avô
e o chapéu e a jaqueta de couro dele dependurados junto à porta de entrada
e a pistola browning na gaveta da mesa de cabeceira dele
e a árvore junto à casa, onde eu vi (ou imaginei) escorpiões negros
e o aristides amansando touro bravo
e a dona josefina na cozinha,
e as tempestades que chegavam vindas do horizonte, como aquela que nos pegou, nós
dois, meu avô e eu, na charrete, galopando de volta para a sede, na tarde
em que ele tentava sem sucesso me fazer decorar a tabuada
e dormir, como eu ia dizendo, na fazenda de meu avô
dava uma sensação de segurança, de permanência, de eternidade
que eu nunca mais senti
e eu nunca mais voltei lá,
era naquele tempo em que, à noite, as estrelas tomavam conta do céu como um tapete
gigantesco                  hoje aquele lugar é um condomínio e
como eu ia dizendo, eu nunca mais voltei lá.




domingo


uma tarde de domingo: melancolia, a
TV desligada, o futebol acabou, a
louça suja acumulada na pia,
restos de um macarrão, e de um dia, e
ao longe, roncam as turbinas do solitário avião, ao se
aproximar de Congonhas; os
passarinhos cantam tristes em quase exata e oposta simetria
ao que fizeram bem cedo, quando o domingo ainda
e apenas, nascia
(e eu penso: como teria um poeta descrito este final de dia?)




poema de amor em outubro


as pessoas pensam que a poesia, se é que a poesia existe,
não serve pra nada
quase todas as pessoas pensam assim
e nós dois também ficamos na dúvida, pensando que utilidade terá, enfim, a poesia
em forma de versos e também aquela poesia que deveria haver em todas as coisas
na beleza que deveria haver em todas as coisas
mesmo (ou especialmente) na rotina de todos os dias e
nos telefonemas bobos e nas idas ao supermercado e ao banco e
na hora que o motoqueiro chega com a comida e
nas horas em que o sol bate assim de frente e estamos no mar, sobre as pranchas e
quando o sol bate numa encosta de morro e estamos na estrada e
enquanto a canoa quase afunda na barra de um rio no sul da bahia e você tem a parte de cima
do biquíni enrolada na cabeça e (apesar do perigo) faz xixi nas calças de tanto rir e
quando eu brincava de helicóptero com a nossa filha e
quando nosso filho saiu, grandão, de dentro de você e
também na sala dos impressionistas do metropolitan de nova york e
no vento inesperado que chega refrescando esta tarde quente enquanto escrevo e
quando os passarinhos na praça cantam antes da hora, não nos deixando dormir e
nos passeios pelas ruas do bairro com a cachorrinha, nos fins de semana e
no seu corpo que vejo sobre o meu refletido no espelho do teto do motel e
até mesmo nas coisas mais tristes (como na história do meu pai que morreu em casa
e do seu que morreu no hospital e no enterro de uma amiga querida);
mas ela é difícil de agarrar: a poesia foge, é arisca, ela se esconde
e no entanto alguns idiotas teimam em
buscá-la, mas por quê? talvez pura e simplesmente, conforme Robinson Jeffers
escreveu, “para sentir
e dizer a impressionante beleza das coisas – terra, pedra e água,
feras, homem e mulher, sol, lua e estrelas...” e pensando assim é
possível que, um dia,  acabemos por nos convencer
de que a poesia existe, e então
estaremos também e finalmente certos de que existe mesmo
alguma beleza nas coisas, e alguma beleza
em outubro.





 Imagem: Yves Lecoq



*    *    *



André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo no longínquo ano de 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Pauloe Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Há pouco tempo decidiu que já estava mais do que na hora de tirar seus poemas da gaveta e espalhá-los por aí.



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