Ilustração: Observadores, Tere Tavares
Estranho
Seus relógios cujas têmporas já não são o que foram,
e ainda estão ali, pluviais,
ligadas pelos ossos irredutíveis do tempo,
esse mistério, arca insigne que o acolhe.
Sílaba a silaba,
o raiar de uma página sobre a saliva do peito
a soletrar e escorregar por dentro
a tentativa de uma visão maior que um olhar.
As narinas das tintas esperando o dedilhar dos pomares,
dardejando ocultamente, numa ternura que o chamará de pássaro ou dragão.
que por fim se fará, sendo a sua própria naturalidade obstinada, circunscrita num acervo recluso – acordar miseravelmente numa palavra que ainda tem memória e insônia, sentir o choro e guardá-lo numa poça perene – a laringe.
Ilustração: O barqueiro, Tere Tavares
Das cicatrizes da lucidez
Os compassos das lâmpadas sorvem o silêncio
Das inclinações alucinadas
Dos tambores ocasionais
As pálpebras dos peixes são interrogações hipnóticas
Brilho a brilho aos pés das águas
Das raízes com asas de chuva
Necessita dos pássaros para abrir as manhãs
Na pausa ondulante do corpo mitiga o esboço do vento
Como se culminasse numa casa de pêssegos
ao tocar a ramagem ausente das mãos
Lapida-se num regato de madrugadas
Na pétala rasa que toca a face dos violinos
Quando, e só então, desacorda.
Ilustração: À luz dos livros, Tere Tavares
Brio
A noite pulsa no meu espaço inerte
Fontes assumem a linguagem das coisas não nomeadas
Dos céus repentinos nascem incêndios
Que renovam as matas e repousam
Unos
Ainda que modificados
Há uma escuridão que não é de todo escura e há memórias definhando
há o vento amadurando a chuva como um ímã que desliza sobre a tristeza de ser ausente
há o vento amadurando a chuva como um ímã que desliza sobre a tristeza de ser ausente
A lágrima esculpe as montanhas, e as figuras vacilam no mar e nas algas
No insustentável navio do vento
alguém soluça no suspiro do pássaro que virou estrela e raiz e chama
alguém soluça no suspiro do pássaro que virou estrela e raiz e chama
E lá se perde o silvestre fluido das sedas e das pedras que lapidam os pés
Algo cresce dentro de mim como um arbusto, uma luzerna numa carruagem de águas paralelas... enquanto uma réstia de neblina insiste em dissipar-se apesar da súplica solar.
Existo e inexisto nas feições incontáveis do mundo que me liberta e me estreita na palavra, no que teriam por dizer-me os braços manchados de luz.
Ilustração: Voo beija-flor, Tere Tavares
A arte foge ao tempo
Num sonho que é a vigília de acordar
Sobressai de uma lua a brisa morna
A centelha alheia à vontade de interpretar
Custa-me ouvir o que virá de sua presença prateada
A noite é uma espera de madrepérola
Que parece conhecer-me de há muito
A realidade não é essa que espreita o erro da outra realidade que me oculta
Nesse mundo insuficiente
As flores de lume não se findam
Depois de se haverem fecundado
Ao ingresso augúrio das sementes
O silêncio vibra e pendura-se nas pétalas de ouro
No intervalo do meu sonho que era saber-me ao não sonhar
Nada mais que o regresso de outro braço que existiria
Como todas as praias que conheci e os ventos fecundos que perfilei
Saboreando gemidos tão perfeitos e caídos
Tão imersos e gastos num quase exílio
Tudo advinha solenemente à ânsia de razões nenhumas
Como imaginava a minha aldeia calma onde a vida
Perdia-se sem as alterações e as angústias do meu riso
Fugi ao ver o que eu queria na volúpia do que sente
Todo o torpor era mais um quadro,
Cílios que se enchiam de espasmos e jardins
E nomes inteiros de ardis inalterados
No mesmo luar da noite que vigiava a minha dormência falsa
A insônia buliçosa das palmeiras e casarios
O irreal sem obscuridades demorando-se à beira da areia
Tocando as iras da água espessa de suster os meus cabelos lisos de espuma
Num serenar de mundos sem cabeleiras
Nenhum mar sem desejos ou paraísos
Como a lua que iniciava aquele termo fugidio
Onde atemporal me subornava, mínima, ilícita, íris de coisa alguma, para compreender-me e ao meu destino irretratável.
Tere Tavares, escritora e artista plástica, radicada em Cascavel, PR, autora de quatro livros publicados "Flor Essência" ( poesia 2004), "Meus Outros" (poesia e prosa 2007), "Entre as Águas" (prosas 2011) e “A linguagem dos Pássaros” (poesia Editora Patuá, SP, 2014). Participante de três coletâneas editadas em Portugal: "A arte pela escrita III" (2010) "Cartas ao Desbarato (2011) e "A arte pela escrita IV" (2011). Integrante da antologia “Saciedade dos Poetas Vivos”, Vol 11 (2010) organizada pelo portal “Blocos onLine”.Teve trabalhos selecionados no Banco de Talentos Febraban com o conto “Sem pena de ter” 2007 e com a poesia “Eu em mim; de um outro lado” 2009 – ambos editados nas antologias da Febraban. Ainda em Portugal foram publicados poesias e prosas em diversas edições do “Debaixo do Bulcão Poezine” . Na antologia “Contologia” da revista “Arraia PajeurBR 4, 2013” teve a publicação do conto “Ainda sobre Margaridas”. Publicou poemas e textos em “Cronópios”, “Histórias Possíveis”, “Blocos on line”, “Ver-o-Poema”,“Musa Rara”, Revista “Diversos Afins”, “Germina – Revista de Literatura e Arte, Revista “Grito” e Revista “Escritoras Suicidas”.
Participa do portal lusófono litero-artístico “EscrtArtes” e do blog Dardo.Integra a Academia Cascavelense de Letras onde ocupa a cadeira de número 26. Edita o blog http://m-eusoutros.blogspot.com/