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5 POEMAS DE DANILO AUGUSTO

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pra mim chega de terras devastadas
deitar - na grama, com a cabeça vazia de saber
que o mistério infinito ainda não pôde comigo
aniquilar. estar vivo é mais do que pediria
caso me fosse dado pedir e mais do que poderia imaginar
no entanto não me foi dado e eu nada devo
neste dia entre o céu e a grama, sob o afeto do sol
viver é mais do que eu posso imaginar
tenho um corpo comum e ele basta para quando a chuva cai
delinear algo nesta grama que seria bobo explicar
tentar entender faz sentido e tem sua beleza reservada
mas estar aqui não tem nenhuma explicação
que me emocione mais do que levitar e não entender
este mundo não é nenhuma ruína ou piada
ele guarda sete bilhões de almas
e nunca reclama quando algumas são levadas de seu lugar
o desespero é algo para se amar como um beijo
no machucado do nosso filho       
(ela que me beijou sob a barriga de minha mãe
e amando me espera para quando um dia eu chegar
acha que me roubou o mistério mas me ilumina
como uma chama a queimar sobre esta grama acessa)
viver é mais do que eu poderia imaginar
hoje minha mulher me beija a alma sob a boca
estamos nós dois deitados e chegamos a confundir
nossa almas derramadas e esta grama tão repleta
(ela é linda, minha mulher, e é minha como minha vida)
um dia nossa filha me beijará o corpo sob um pano
está quente! ela dirá, mesmo que seja impossível



***




não peça amor à sua filha, uma vez sequer
amor requerido é buraco negro
olha pros olhos da sua filha, amar a si mesmo é amá-la
deixa que ela saiba o que ela tem que saber
como deixamos o ar habitar nossos pulmões
ou a relva crescer

não há nada como o amor de uma filha, uma coisa sequer
o amor de uma filha é desejo de viver
quando tão pequena ela lhe agarra como o nascer do sol
ela já lhe deu amor pra toda sua vida

por isso não indague, não indague nunca
olha pros olhos da sua filha como o amor se multiplica
ela também olha você




***




felicidade não diz o próprio nome
como a justiça

não defende a si mesma
no claro dia

apenas a dor vence o sol
apenas ela é a tinta

da consciência singular,
isto que se chama vida

única onde se ama
sem eterno amor

mãe, mulher e filha
com apenas amor

calado, difícil
como um gérmen de trigo

trinir invisível
das horas do sino

a dor mais real
é o espírito



***




dai-me forças para encontrar em mim
o amor que não há
a fé que odeio
amar procurar

tenho fome, tenho sede, tenho penas doloridas
não quero estas penas, a injustiça
a fome, o medo, aceito, é o meu lar
mas não me faça delirar com as mãos comprimidas
contra o meu o peito a solidão do meu pai

se você fosse justo e bom
soprava na minha face, me quereria
por desejar o amor

mas não há bondade na justiça
nem alivio na verdade
nem amor em ti
dai-me forças pra encontrar

a beleza na beleza
e me calarei
nada mais hei de pedir



***





não leia mais
pra que ler?
você pode me procurar
eu moro na rua afonso rui, nº189, itaigara
é uma casa bonita, a gente tem um jardim e uma piscina azul
a gente tem um coelho um peixe e uma cachorra e espaço pra você
o muro é de pedras verdes marinhas e o portão amarelo gema
é no topo de uma ladeira e é quase no topo de uma montanha
as vezes eu estou entre a loucura e o desespero mas eu não xingo
nem falo alto, nem fico me queixando, eu não vou deixar ninguém triste
aqui é calmo e tem espaço pra redes, a gente se ama e as vezes conversa até o amanhecer
ninguém é injusto, ou muito pouco, ou muito raramente
minha filha tem três anos e ela é uma grande poeta e uma grande companhia
ela é justa e boa e pode beijar seu machucado se você se machucar
eu faço café, eu cozinho massas, eu destilo minha própria cachaça
eu deixo a massa do bolo crescendo ao sol, a toca do coelho é feita de telhas e tijolos
o peixe muda de cor muito lentamente se você parar para reparar
minha mulher cuida dos doentes e desesperados e quando ela chega eu lavo suas costas
massageio sua testa e penteio seus cabelos, depois a visto e ela me abraça e começa a chorar
ela me diz que tem uma mulher com uma ferida que não se pode mais fechar
mas que ela é feliz e tem três maridos e que ela quer dar seu lugar a alguém
que realmente precise porque a única coisa que a incomoda é o cheiro
aqui nos temos três andares de jardins, temos coqueiros e copos d’águas
e aquelas flores comuns e bonitas que formam uma cúpula vermelha
e sempre trazem uma gota de mel em seu botão
nos temos muito mais do que precisamos só em flores
nos temos, muito, muito mais, venha até nos
eu ensinei minha filhar a cuidar do cachorro, o cachorro do coelho,
o coelho do peixe e o peixe das suas cores, nos podemos cuidar de você
meus avós dormem de dia e de noite eles acordam
e substituem o filtro de água, e trocam a terra de dentro dos vasos
as vezes as próprias flores eu acho que eles trocam, depois dormem abraçados
sobre o sofá ou sobre os brinquedos e eu os levo pra suas camas, os cubro e abençoo
eles fizeram muito por mim, eles podem fazer muito por você
eu tenho uma cicatriz que vai do meu joelho até meus dentes
meus órgãos haviam se derramado e eles os costuraram em seus lugares, um por um
eles fizeram isso por mim, mas eu não quero falar sobre isso agora
você pode ficar o tempo que quiser, você não precisa ficar para sempre
você pode se sarar e partir e também não precisa deixar nada não
nem pagar nada, nem ter certas pretensões ou requisitos
nos temos mais do que precisamos e um grande coração





Foto: Angela de Magalhães



***





Danilo Augusto de Athayde Fraga nasceu em Salvador, Bahia, em 1990 e é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou os livros Poemas (2013-2014, edição do autor), Zumbi (2013, Coisa Edições) Canto para a morte de Mandela (2013, Ritmo Zero) e Sonhos e outros Sonos (2005, Luripress). Danilo tem obras publicadas em revistas e portais como o Escamandro, Modo de Usar & co, Cisma, Jornal Relevo, Pessoa, Germina e Musa Rara e, recentemente, vem traduzindo e publicando textos inéditos de poetas como Hart Crane, Wallace Stevens, Blake, Plath e Emily Dickinson, juntamente a outros contemporâneos como Ashbery e os poetas Flarf. Uma seleção de tradução comporá, em 2015, o livro Begginer,que será lançado juntamente à Um Crítico pela manhã, primeira coletânea de ensaios do autor, pela Ritmo Zero. Seus escritos já foram premiados em espaços como o “Concurso Universitário de Literatura Latino-Americana” e o “Jornalista do Futuro” e constam em diversas coletâneas e antologias nacionais e internacionais, tendo alguns poemas traduzidos para o inglês, espanhol e italiano. Estar na Grama (do qual foi extraída a presente seleta) é livro ainda inédito do autor.










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