COSMOGONIAS
Os deuses nascem da angústia.
Diante do abismo, nasce um deus.
Diante da noite, nasce outro.
Diante do amor, diante da morte, diante do brilho do sol,
diante do mar tenebroso, diante da chama do fogo
nascem os deuses magníficos e terríveis
que nos atormentam.
Ajoelho-me ante o seu panteão, prostro-me, beijo a laje fria do chão.
Não sou nada. Eles também.
Mas juntos criamos o mundo
pelo poder da palavra que é nada também.
Tudo é nada? O todo pode provir do nada?
Deixemos estas perguntas tolas para os cientistas e os teólogos.
A mim cabe admirar o que não tem explicação,
o que não faz sentido
(admirar ou me indignar),
prostrado no chão, dançando no abismo, chorando a ida dos dias.
Os deuses nascem da angústia.
Diante de um par de seios, diante da semente na terra, diante da morte de um filho
nascem os deuses da revolta e da submissão.
A mim cabe apenas presidir o ofício divino
com minha mitra, meu báculo de pastor e meu espanto de criança.
Eu mesmo acendo as velas, exorto os fiéis, faço a leitura dos livros sagrados.
Depois transformo barro em cidades, trigo em banquetes, vinho em civilizações antiquíssimas.
Não sou nada. Os deuses também.
Mas juntos criamos os mundos
que povoamos nas noites de angústia e solidão.
Pois cada mulher e cada homem nascem sozinhos (ainda que gêmeos),
morrem sozinhos (ainda que num acidente de carro
ou na explosão de um míssil na Faixa de Gaza)
e entre um ponto e outro, entenda: ninguém te entenderá.
Nem os deuses. Nem você.
Os deuses nascem da angústia.
Os deuses e este poema.
SIMBOLISMO
Recolhi todas as estrelas
nas minhas mãos em concha
e aqui as deponho
como instrumentos
de iniciação.
Com elas desenho um outro céu
num novo firmamento
com duas luas, dezoito sóis
e o cometa dos seus olhos
encabulados.
Neste outro mundo
tudo se corresponde: o eco da sua voz
é o pássaro que me acordou
de madrugada. Suas mãos
no regato
é o tempo que me segreda
mistérios novos.
Recolhi todas as estrelas
e descobri que tudo é símbolo:
cada astro, cada planeta
é o signo de um antiquíssimo alfabeto
que só agora decorei.
Recolhi todas as estrelas
e elas palpitam como peixes vivos
nas minhas mãos
maravilhadas.
E descobri que ser poeta
é saber lê-las
para você.
SOLA SCRIPTURA
Inscrevo
no teu corpo
as marcas da minha salvação.
De um lado,
uma cruz, um horto, um coração
vazado.
De outro,
uma terra que mana leite e mel.
Entre um ponto e outro,
soletro minha bíblia
e de joelhos confesso:
tu és a minha luz
e a minha danação.
O MISTÉRIO DA VIDA
Foi na praia. Uma lua enorme
nascia dentre as ondas negras.
O vento trazia o teu cheiro
junto aos teus cabelos
e a areia, sob os nossos pés descalços,
registrava um itinerário de fugas
e espantos. Não havia dúvidas nem certezas: o próprio medo
era feito de esperança. Se eu acreditasse em Deus, exclamaria:
a terra onde pisam as palmas de meus pés é santa.
De repente, as estrelas todas
caíram do céu e nas rudes canoas dos pescadores
o mistério da vida se refez: a areia, as algas, a noite, o brilho do farol
se fundiram numa concha branca
que eu recolhi na concha de minhas mãos em prece.
Admirei suas nervuras. Provei de seu mel,
bebi de seu vinho, surpreso de não haver desfalecido.
(A lua se erguera feito um estandarte de paz
e, na areia clara, nossas sombras azuis
lacraram um testemunho: perfeito na humanidade, perfeito na divindade,
conforme o augusto Concílio.)
Depois foi a escuridão, o precipício. E a convicção:
quando eu morrer – numa sexta-feira às três em ponto da tarde –
estarei pensando em você.
Ilustrações; deviantART
Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, capital, em 1967. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba, em 1982. Em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2008 foi contemplado com uma Bolsa para Obras em Fase de Conclusão da Biblioteca Nacional e em 2010 recebeu a Bolsa Funarte de Criação Literária, com as quais, respectivamente, produziu um romance e uma novela, ainda inéditos. Em 2012 foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, com o volume Desacordes.