A fase vermelha
Começamos a pintar praticamente na mesma época, ele talvez um ou dois anos antes. Mas logo tomamos caminhos diferentes: eu rumei para o abstrato e Pedro optou pelo figurativo. Só voltamos a nos cruzar muitos anos depois numa vernissage onde ele mostrou todo orgulhoso sua nova fase. Vi o quadro de longe, uma mulher despudoradamente nua e arreganhada. Aqueles olhos, aquele olhar, eram dois faróis negros que perscrutavam a distância. Uma semelhança tão incrível que não dava margem a dúvidas. Intimidada e visivelmente constrangida, minha mulher confirmou a suspeita. Marquei um encontro no ateliê de Pedro para o dia seguinte. A estocada foi fatal, na jugular, o sangue jorrou forte e respingou numa tela. Ele era um pintor muito melhor que eu. Não me importei com o adultério.
Hay que endurecer
Arriscando o próprio pescoço, ela foi encontrar o seu amado no esconderijo da resistência. Ia dar-lhe a notícia de sua gravidez. A guerrilha armada já ia pelo seu quinto ano, tinha detonado várias delegacias em atentados-relâmpago e executara pelo menos três oficiais do exército. Foi barrada em duas blitz da polícia de repressão, ouviu gracejos, atravessou pântanos. Quando chegou ao abrigo, flagrou o amado saindo de um quarto com outra mulher, que arrumava os cabelos em desalinho. Saiu de lá correndo e ainda teve tempo de ouvir às suas costas algumas risadas de seus companheiros. Delatou-o. Mesmo que derrotasse a ditadura militar, a nova ordem não iria mesmo mudar nada nesse sentido.
Imagem: arte de John Ross
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