Nos romances anteriores, estudos de manuscritos revelam que o escritor Marcel Proust acrescentou, aos episódios de Albertine, trechos de textos redigidos anteriormente. Isso acontece de maneira diferente nos volumes de A prisioneira e A fugitiva, romances que foram escritos após a morte de Alfred Agostinelli, secretário de Proust. Biógrafos contam que Agostinelli, que viveu alguns meses com Marcel (antes de falecer num trágico acidente aéreo, em 1914), precisou fugir da casa do escritor para escapar de suas crises de ciúme doentio.
A prisioneira, romance póstumo (assim como os demais romances que o sucederam) narra a vida amorosa do protagonista ao lado de Albertine Simonet. Albertine é uma garota de olhos atrevidos e bochechas macias; às vezes, parece ser uma rosa, cremosa, felina; outras vezes, um turbilhão. Das moças-flores de Balbec, Albertine é a única menina órfã, pobre, sem um tostão... “uma moça incasamentável” que vive com a senhora Bontemps, sua tia, que fica chocada com as provocações da menina. Enfim, Albertine pertence – segundo o narrador – a uma “raça” de seres que, logo no primeiro olhar, ganha a simpatia de qualquer um!
Albertine evolui numa sociedade burguesa, graças ao prestígio oferecido por suas “madrinhas” e protetoras. Uma vez que conhecemos Albertine, não nos surpreendemos mais pelo fato do narrador procurar tanto a presença desta personagem: por detrás do temperamento egoísta e da efervescente juventude, há um pingo de natureza boazinha que faz com que a jovem sempre agrade a todos!
Perguntamos: Por que o Narrador, mesmo hesitando, deixou-se levar por um “caminho” infeliz, ou seja, pelo “lado” de Albertine? Teria ficado obcecado pelo amor de Albertine enquanto acompanhava o percurso, instável e sedutor, da famosa verruga na fisionomia da jovem? Talvez.
Em busca das “mil faces” da jovem, o Narrador não a deixará mais em paz. No quarto fechado, ele não desiste: busca interpretar cada gesto, comportamento e palavra daquela que ele nomeia “criatura em fuga”.
“E meu sentimento encontrava nela a força elétrica de uma vontade oposta que o repelia com vivacidade; nos olhos de Albertine, eu via essa força soltar suas faíscas. De resto, de que adiantava cuidar do que diziam as pupilas naquele instante? Como é que eu não havia percebido há muito que os olhos de Albertine pertenciam à família dos que (mesmo numa pessoa medíocre) parecem feitos de vários pedaços, por causa de todos os lugares onde ele deseja encontrar-se e ocultar que quer achar-se nesse dia? Olhos, por mentira sempre imóveis e passivos, mas dinâmicos, mensuráveis pelos metros e quilômetros que é preciso transpor para chegar ao local do encontro marcado, implacavelmente marcado, olhos que sorriem menos ainda ao prazer que os seduz do que se aureolam da tristeza e do desânimo de que talvez existam obstáculos para ir a esse encontro. Entre nossas próprias mãos, tais seres são criaturas em fuga. Para compreender as emoções que causam e que outros seres até mais belos não causam, e preciso calcular que eles estão, não imóveis, mas em movimento, e acrescentar à sua pessoa um sinal correspondente ao que em física é o sinal que indica velocidade.”
Na hora de dormir, o narrador analisa Albertine, em pé diante dele. Quando deitada ao lado do herói, a jovem se transforma num retrato amoroso:
“Albertine cruzava os braços atrás dos cabelos pretos, os quadris bojudos, a perna caída numa inflexão de pescoço de cisne que se alonga e se recurva para voltar sobre si mesmo. Só quando ela estava inteiramente de lado, é que se via um certo aspecto de seu rosto (tão bom e tão bonito de frente) que eu não podia suportar, adunco feito em certas caricaturas de Leonardo da Vinci, parecendo revelar maldade, avidez pelo lucro, artimanhas de uma espiã cuja presença em minha casa me teria horrorizado, e que parecia desmascarada por esses perfis. E logo eu tomava o rosto de Albertine entre as mãos e a repunha de frente para mim.”
Ele a espreita ao máximo, tenta proibi-la de sair para encontros com as demais amigas, que, aliás, em sua ótica, são moças que “preferem as mulheres aos homens”. Atormentado pela questão da infidelidade de Albertine, o Narrador busca sondar o pensamento de Albertine e saber quais pessoas ela frequenta:
“Enquanto Albertine ia mudar de roupa, eu, para providenciar o mais depressa possível, peguei o receptor do telefone, invoquei as divindades implacáveis, mas não fiz mais que excitar a sua fúria, que se traduziu por estas palavras:
“– Está ocupado.” De fato, Andrée estava conversando com alguém. Enquanto aguardava que ela terminasse a ligação, eu me perguntava por que motivo, já que tantos pintores buscam renovar os retratos femininos do século XVIII, em que a engenhosa encenação é um pretexto para as expressões da espera, do arrufo, do interesse e do devaneio, por que motivo nenhum dos nossos modernos Boucher ou Fragonard pintou, em vez de La Lettre [“A Carta”] ou o Clavecin [“Cravo”], etc., esta cena, que poderia chamar-se: Diante do telefone, e na qual nasceria espontaneamente nos lábios da ouvinte um sorriso tanto mais verdadeiro por saber que não era visto.”
Albertine ainda não sabe de nada, mas está fadada a tornar-se A Prisioneira. Para tranquilizar o Narrador, ela terá que ceder a todos os caprichos dele, dar-lhe todas as satisfações possíveis e... até vir morar com ele para acalmar as crises de ciúme. Na ótica do Narrador, se Albertine tornava-se uma pessoa mais culta e mais inteligente, era porque ela o tinha por companhia. Mais culta e mais inteligente, porém menos livre! Desconfiado, o leitor também começa a achar que Albertine seguia o caminho de Gomorra.
Tomado pelo ciúme, o narrador não procura mais “a vida e os pensamentos reais das pessoas (...) no enunciado direto que, deles, elas me forneciam voluntariamente”. Ele busca construir um inferno onde o tempo aparece abolido!
“(...) eu, que durante tantos anos só buscara a vida e o pensamento reais das pessoas no enunciado direto que deles me forneciam elas voluntariamente, chegara pelo contrário, por culpa delas, a só dar importância aos testemunhos que não são expressão racional e analítica da verdade; as próprias palavras só me informam sob a condição de serem interpretadas como um afluxo de sangue ao rosto de uma pessoa que se perturba, ou ainda, à maneira de um súbito silêncio.”
Cada noite, quando o narrador beija Albertine, é como se beijasse sua mãe em Combray, para acalmar sua ansiedade. Fica surpreso ao notar que, cada vez mais, seu estado “doente” igualava-se ao estado febril de sua tia Léonie que, enferma, não queria sair da cama. Em outro momento, quando não mais sentia vontade em falar com Albertine, o narrador rememora uma frase dita pela avó: “Quando ultrapassamos uma certa idade, a alma da criança que fomos e a alma dos mortos de que saímos vêm jogar-nos, às mancheias, suas riquezas e seus maus destinos, exigindo colaborar nos novos sentimentos que experimentamos e nos quais, apagando sua antiga efígie, nós os refundimos em uma criação original.”
Nota-se também que o quarto (que resguarda vários estágios e idades da existência do herói-narrador) “cristaliza”, inclusive, a cidade. Através das janelas, penetram o som e o odor – de repolho, cenouras, laranjas vendidas no mercado –, que chegam na mesa “transformados numa boa refeição”.
Assim, este livro cujo personagem principal remói seu ciúme, retomando sempre o mesmo tema com sutis variações, assemelha-se a uma ópera. No tema principal – o amor ciumento, hétero, por Albertine, – reflete-se no tema do amor homo, mantido pela louca relação de ciúme do barão de Charlus com o jovem Morel. Essas mesmas paixões são “pré-anunciadas”, em “O Amor de Swann”, na vibração do amor de Charles Swann e Odette de Crécy.
O Narrador fica sabendo da morte do romancista fictício Bergotte. Na Busca, o personagem não visitava mais os amigos, nunca saía; vivia de forma simples e silenciosa. No entanto, intrigado com um artigo sobre uma pintura que ele gostava, Bergotte reuniu suas forças para ir vê-la numa exposição:
“Morreu nas seguintes circunstâncias: uma crise de uremia bem leve fora motivo para que lhe prescrevessem o repouso. Mas, tendo um crítico escrito que na Vísta de Delft, de Vermeer (emprestado pelo museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e julgava conhecer muito bem, havia um pequeno lanço de muro amarelo (de que não se lembrava) tão bem pintado que era, se lhe fixassem o olhar, como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que não bastava em si mesma - Bergotte comeu algumas batatas, saiu da casa e foi à exposição. Logo aos primeiros degraus que teve de subir, sentiu tonturas. Passou diante de vários quadros e teve a impressão de secura e da inutilidade de uma arte tão artificial, e que não valia as correntes de ar e os raios de sol de um palácio de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Por fim chegou diante do Vermeer que ele recordava ser mais cintilante, mais diverso de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez em pequenos personagens em azul, e que a areia era rósea, e, afinal, a preciosa matéria do pedacinho bem pequeno de muro amarelo. Suas tonturas aumentavam; não tirava os olhos do precioso pedacinho de muro amarelo, como procede a criança com uma borboleta amarela a que pretende agarrar.”
Um dos episódios mais terríveis do livro é quando a família Verdurin tenta separar Charlus e Morel (Swann e Odette, também, foram vítimas de um rompimento dramático, manipulado por essa mesma família). Arrasado, humilhado, Charlus deixa a casa dos Verdurins, nos braços da rainha de Nápoles, como num palco de teatro.
Além disso, a música é um dos temas mais espetaculares do livro. No palácio dos Verdurin, o virtuoso Morel interpreta a música de Vinteuil que desperta, no herói, intensa felicidade. A partir daí, Proust nos faz compreender que a arte permite “a única viagem verdadeira, o único banho de Juvência”, ou seja, apenas a Arte pode comunicar o “inefável” e revelar o universo por meio dos olhos de um outro: “(...) e isso podemos consegui-lo com um Elstir, com um Vinteuil; com seus pares verdadeiramente voamos de estrela em estrela.”
“A única viagem verdadeira, o único banho de Juvência, seria, não partir em busca de novas paragens, mas ter outros olhos, ver o universo com os olhos de outra pessoa, de cem outras, ver os cem universos que cada uma delas vê, e isso podemos consegui-lo com um Elstir, com um Vinteuil; com seus pares verdadeiramente voamos de estrela em estrela.”
Essa intensa emoção artística também é sentida pelo escritor Bergotte diante do “pequeno lanço de muro amarelo”, na Vista de Delft de Vermeer: “Por fim, [Bergotte] chegou diante do Vermeer que ele recordava ser mais cintilante, mais diverso de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez em pequenos personagens em azul, e que a areia era rósea, e, afinal, a preciosa matéria do pedacinho bem pequeno de muro amarelo. Suas tonteiras aumentavam; não tirava os olhos do precioso pedacinho de muro amarelo, como procede a criança com uma borboleta amarela a que pretende agarrar.”
Bergotte adoece. Sofre cada vez mais. “Assim é que eu deveria ter escrito”, dizia ele. “Meus últimos livros são muito secos, seria preciso passar-lhes diversas camadas de cor, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este pedacinho de muro amarelo”, alucina dolorosamente o escritor momentos antes de morrer, deslumbrado, diante do quadro e da “preciosa matéria do pedacinho bem pequeno de muro amarelo”. Essa característica revela a imagem essencial do estilo literário de Marcel Proust.
O quadro de Vermeer foi o último a ser contemplado por Marcel Proust durante uma exposição de pintores holandeses, em maio de 1921, no museu do Jeu de Paume. Algumas horas antes do seu falecimento, no dia 18 de novembro de 1922, o escritor ainda ditava dois fragmentos que fariam parte do episódio da “morte de Bergotte”.
Jediel Gonçalves
Ilustrações:
1.Dois perfis grotescos, Leonardo da Vinci, 1485-1490
2. A lição de música, Jean-Honoré Fragonard, 1769
3.Vista de Delfos, Jan Vermeer,1659-1660