Amo e abençoo o sonho. À noite, aflita,
reza, braços em cruz, minha alma, quando
no grande altar dos céus ardem velas...
E mando aos céus, onde o meu sonho habita,
os meus rogos de poeta, acompanhando
todo o coro infinito das estrelas.
(em “Sonho Abençoado”)
Rodrigues de Abreu (1897-1927), considerado por muitos um pormenor do movimento modernista brasileiro, teve, em grande parte de sua obra, inegáveis características simbolistas. O fato dele ter optado em seu derradeiro livro – A Casa Destelhada (1927) – por um estilo influenciado pelo o que foi proposto em 1922 não anula o fato de ter sido o poeta, nascido em Capivari, interior de São Paulo, autor de belíssimas obras do simbolismo brasileiro. Apesar disso, o seu nome não aparece em nenhuma grande antologia sobre o movimento literário de Cruz e Sousa, configurando-se em um erro de análise crítica, pois, não obstante a participação de Rodrigues no modernismo, a sua produção simbolista é evidente e de qualidade inegável, sobretudo tendo em vista a valorização do Simbolismo paulista, já que ainda se lê e crê que a arte nefelibata mais importante produzida na região foi feita por Emiliano Perneta, Alphonsus de Guimaraens quando alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
A poesia simbolista de Rodrigues de Abreu encontra-se, essencialmente, em Noturnos (1919) e em A Sala dos Passos Perdidos (1924). Em sua obra esparsa também há vários sonetos de inspiração portuguesa, de Antônio Nobre, principalmente. Sobre seu nome, porém, pairou a negação dessa influência. Em suas Poesias Completas, publicadas em 1952, o prefaciador, Domingos Carvalho da Silva, chegou à impressionante conclusão de que a presença de maiúsculas constantes na obra de Rodrigues de Abreu deve-se a um deságue da poesia de Bilac (nas palavras de Domingos Carvalho: “... ao modo de Bilac, escreve frequentemente com iniciais maiúsculas palavras como Altura, Amada, Desconhecida, Saudade, Primavera, Cidade, Eleita, Forma, Castelos, etc...”) sendo que, como sabemos, a utilização de maiúsculas no objetivo de signo-idealização é uma característica sintomática do Simbolismo! Ou seja, discutir a produção simbolista do poeta da Casa Destelhada é uma justiça à sua obra, sobre a qual ainda paira uma estranha vergonha de se ter um estro decadentista. E que se faça a nota: Bilac influenciou, sim, Rodrigues de Abreu, mas, curiosamente, o poeta citou mais vezes o poeta da Via-Láctea em seu livro de 1927, de feição modernista, do que nas outras obras.
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Rodrigues de Abreu, em foto conhecida Créditos: Portal São Francisco |
De imediato, no poema introdutório da Sala dos Passos Perdidos, o seu primeiro livro a ter uma divulgação considerável,há um evidente imaginismo de sentido metafórico:
“Minha alma é a Sala dos Passos Perdidos do Rei Salomão,
que andou por minha alma num grande bocejo.
Hoje, anda chorando, no fundo da minha existência,
a enorme saudade das coisas apenas sonhadas:
os corpos e as almas, os beijos e os gritos
de noivas geradas por meu pensamento,
eu sinto seguindo-me os trôpegos passos...”
Como citado, muitos de seus poemas traziam uma considerável influência da poesia simbolista portuguesa. Não, por exemplo, como um Ernâni Rosas que chegou a modificar a dicção em seus versos fazendo com que eles soassem muito mais lusitanos do que brasileiros, mas em um aspecto temático, principalmente acerca do saudosismo e medievalismo, típicos da poesia de Antônio Nobre, com o qual Rodrigues de Abreu teve outra trágica identificação: a tuberculose. Em seus dois sonetos “Os Castelos” evidencia-se essa perspectiva, além de uma clara evocação à temática da torre de marfim:
OS CASTELOS (em A Sala dos Passos Perdidos)
I
Quando elevei, ao luar da fantasia,
no areal, os meus castelos de ouro e jade,
não julgava (ai de mim!) que, na ansiedade,
eu mesmo, sim, eu mesmo os destruiria.
Ergui-os no ar com tal facilidade
qual se elevasse uma canção macia;
e deles para os céus o olhar erguia
na alta Torre da minha ingenuidade.
O Mestre Luar meus sonhos revestia
da graça boa e simples de outra idade,
da qual, bom trovador, eu revivia...
E hoje, onde está minha simplicidade,
a cuja luz, Castelos, eu vos via
edificados para a eternidade?...
II
Um dia (cegasse antes!), atentando
para a terra de sombras, avistei
mais que mulher, um lindo sonho brando,
melhor dos sonhos todos que sonhei.
Desci da Torre, célere, abalando
as ricas salas que eu edifiquei.
E ao partir, esse novo ideal buscando,
minha Torre, sem lágrimas, deixei...
Em vão, o mundo percorri, sangrando..
E, quando a longa volta ao mundo dei,
vi-me junto à alta Torre, mas chorando.
Tantas e tristes lágrimas chorei,
que, aos poucos, destruí, o areal minando,
os meus Castelos, onde fora rei!
Não raramente, a poesia de Rodrigues de Abreu ganha contornos de um Simbolismo à Alphonsus de Guimaraens em seus momentos mais Pós-Românticos. Não somente pela constante procura de uma Musa que não se revela materialmente, mas pela relação – não raramente católica – etéreo-amorosa dessa amada, como nos revelam esses belos dísticos:
QUANDO O CREPÚSCULO DESCIA (em A Sala dos Passos Perdidos)
Mulher! Às vezes, penso, comovido,
que é preciso outra voz pra te falar...
Ontem, um anjo andava no ar perdido,
e vendo-me contigo conversar,
olhou-te bem, e ao ver-te, à luz do poente,
frágil e linda, toda cismadora,
adorou-te, dizendo tristemente:
“- Por que desceu do céu Nossa Senhora?!”
É possível que uma de suas mais belas obras seja a série “Ao Luar”, três sonetos sem separação, e sem dúvida alguma um dos mais simbolistas do poeta. O seu verso inicial (“Os santos óleos, do alto, o luar derrama”) é de primeira grandeza imagética. Note-se que a musicalidade desse poema, obtida por meio de rimas internas, repetições e pequenas aliterações, vai muito além da musicalidade matemática dos parnasianos. Vejamo-lo por completo:
AO LUAR (em A Sala dos Passos Perdidos)
Os santos óleos, do alto, o luar derrama...
Eu, pecador, ao claro luar, ungido,
sonho: e sonhando rezo comovido
e arrebatado na divina chama.
Deus piedoso, consolo do oprimido,
se compadece à voz que ardente clama,
porque meu coração, impura lama,
é um brado intenso para os céus erguido!
E o divino perdão desce da altura:
grandes lírios alvíssimos florescem
sob a lua, floresce a formosura...
E, nessa florescência, imaculados
raios longos do luar piedoso descem,
choram comigo sobre os meus pecados.
E abre-se então em mim, na florescência
de humana e quase divinal bondade,
uma região de paz e suavidade
em que vivo sonhando, na inocência.
Erra no ar perfumado por essência
rara uma sombra imensa de saudade:
recordação talvez de uma outra idade
de mais amor e de maior clemência.
Recordação, desejo de outro mundo
e sede de justiça e de virtude,
- tudo isso traz-me a sombra comovida...
E rezo e sonho em êxtase profundo:
e nesta hora de paz, que não ilude,
bom, abençoo a estupidez da vida!
Minha alma vai mais leve se tornando...
Flori serena num jardim de hialinas
águas doces correndo nas piscinas:
sente asas, ouve sons, brilha cantando!
Depois, fica, suspensa no ar, vibrando
as asas: paira no ar sobre as campinas,
vai aos céus, vem à terra, entre divinas
e humanas ânsias bêbeda revoando.
E, casta como um lírio, ao luar medita...
E se enche aos poucos das essências raras
que o luar espalha numa unção bendita.
Minha alma estende as asas, vibra e voa...
E tem, vibrando as leves asas claras,
contentamento de sentir-se boa!
Assim como muitos simbolistas, Rodrigues de Abreu manteve uma relação estreita com a música, muitas vezes fazendo referências aos compositores a que cultuava. Quando assim escrevia, a sua poesia lembrava, talvez por um natural diálogo de seu tempo, a de um Eduardo Guimaraens – este, um profundo conhecedor da música erudita. Aos simbolistas, era natural esse profundo diálogo entre a música e a poesia; ora, na França, Debussy já havia eternizado o “Prelúdio para a Tarde de um Fauno”, de Mallarmé (além de ter musicado, sem o mesmo mérito, “Soupir”, “Placet Futile” e “Éventail”); na Alemanha, ocorreu o contrário: foi Stefan George, com sua particular musicalidade, que influiu para que Arnold Shoenberg concebesse o Dodecafonismo. Portanto, o fato de Rodrigues de Abreu abrir diálogo com a música não é uma novidade, mas deixa mais evidente (ainda mais da forma que o fez) a sua poética simbolista. Eis um caso:
NUMA TARDE MACIA (em A Sala dos Passos Perdidos)
Quando a tarde agoniza, eu sonho. E então levanto
o meu sonho de amor para o céu, como santo,
pois sei que uma mulher vem, mansa como a brisa,
colher meu sonho bom, quando a tarde agoniza...
Como uma procissão de freiras tristes, passa
a lenta procissão das sombras. No ar esvoaça
tênue aroma, sutil sonho da terra mansa
que adormece em silêncio e em incerta esperança...
Na tarde, as flores têm desejos de pecar:
o Desejo desdobra as asas, voa no ar,
quando a primeira estrela aparece no fundo
do firmamento, para enamorar o mundo...
O céu é um grande espelho embaciado de sangue...
E há no céu e há na terra uma tão pura e langue
agonia de sons, que, nessa hora, parece
que o Mundo se ajoelho em postura de prece!
O Santo Sonho plange, em soluços, nos sinos,
e erra, brancas, no espaço as almas dos violinos...
A tarde, na agonia, interpreta, sonora,
Schumann, Schubert, Chopin, pois uma tarde chora...
Como eu, o vale pensa, e no alto, a nuvem pensa...
A mesma alma que vem do céu e, triste e imensa,
erra na tarde, vive em mim, cheia de sono:
minha alma é tarde triste e musical de Outono...
Quando a tarde agoniza e suave chora, quanto
envolve as coisas, numa angústia, a alma do pranto,
os anjos descem do alto, abraçando violetas
e colhem, suavemente, os sonhos dos poetas...
Foi numa tarde assim, quando os anjos desciam
do céu e os sonhos bons, suavemente, colhiam,
que uma mulher tomou a forma de anjo e veio,
entre os anjos, colher a flor do meu anseio...
E ela veio, e colheu meu sonho, e, comovida,
se tornou a minha Ânsia e a Só na minha vida...
Eis porque, quando a tarde agoniza, eu levanto
o meu sonho de amor para o céu como um santo:
pois ela sempre vem, nas asas de uma brisa,
colher meu sonho bom, quando a tarde agoniza...
O Simbolismo, ao contrário do que foi propagado por seus detratores (infelizmente, não há palavra que se encaixa melhor), também desenvolveu nos versos temáticas de questões sociais. Cruz e Sousa é um caso mais óbvio e furioso, mas tal questão perambulou pelas estrofes de Eduardo Guimaraens, Gilka Machado, Alphonsus de Guimaraens, Silveira Neto, enfim... Rodrigues de Abreu, em seus Noturnos, também utilizou dessa temática, mas de uma forma bem distante daquela parnasiana, tão culpada em sua lamentação (no Canto II: “Sou irmão dos mendigos./ Se não peço nas ruas por não ser ainda a ocasião,/ peço a esmola do amor, por isso meço/ o sofrimento dos que pedem pão...”). Apesar de ainda ser um poeta claramente em formação, bem aquém daquele que se mostraria em A Sala dos Passos Perdidos e em A Casa Destelhada, vale a transcrição de um soneto completo de seus Noturnos, rico no sentido melancólico, agourento:
CANTO XI (em Noturnos)
A Graccho Silveira
Meia-noite. Mistério. Ânsias no ar. Erra
nos céus a alma de todos os feridos
pela desgraça, em lúgubres gemidos...
Geme lugubremente toda a terra.
Sabe-se o que passou. Mas o que encerra
esta hora escapa a todos os sentidos.
Terei paz amanhã? Ou, como os idos,
outros dias terei de dano e guera?
Os que sofrem, ansiosos, temem, certo,
que ainda não se acabassem as torturas,
que ainda tenham de andar pelo deserto...
Fora, o vento fustiga como açoite.
Hora triste, hora cheia de amarguras...
E há tantas vidas como a meia-noite!
Chama a atenção também a qualidade de seus poemas esparsos. As suas belíssimas “Cinco Estâncias da Primavera”, escritas quando a sua tuberculose atingia níveis desesperadores, são, sem dúvida, as mais relevantes produções do poeta que não foram compiladas em nenhuma de suas obras. Apesar de terem uma temática panteísta, com um verso muito livre, chama a atenção este trecho, de uma simbolização de morte serena, cíclica, praticamente:
(…)
E deito-me alegre na terra nua:
revolvo as barbas na terra nua:
e amimo a terra, brandamente, com as mãos, exclamando:
“MINHA AMIGA! MINHA AMIGA!”
Porque é verdadeiro amigo de alguém
o que lhe alegra e lhe pacifica o espírito triste.
(na “Terceira Estância”)
O fato de Rodrigues de Abreu não ter sido incluído em nenhuma antologia sobre o movimento simbolista configura-se em um grave erro para com a sua poesia. O poeta de Capivari, apesar de adquirir, em sua fase derradeira, uma liberdade estética (comum, diga-se, aos pós-simbolistas, como a um Francisco Karam ou até a um de Onestaldo de Pennafort), produziu, durante grande parte de sua carreira literária, poemas evidentemente simbolistas, com maiúsculas abundantes, traços e descrições nevoentas, e com uma constante utilização de alegorias. A sua poética aproxima-se muito mais daquela produzida pela segunda geração do Simbolismo brasileiro e, como já exposto, há uma evidente influência de Antônio Nobre, para o qual escreveu um bom soneto (“Meu Santo Antônio Nobre/ eu te bendigo/ ingenuíssimo triste de alma inquieta!/ Sou infeliz, e ao ler-te, entanto digo/ chorando: - Pobre poeta, pobre poeta!”). É tempo, portanto, de se fazer justiça ao nome de Rodrigues de Abreu e ao Simbolismo em São Paulo, ainda absurdamente confundido com Parnasianismo (o caso de Francisca Júlia, parnasiana em um período, simbolista em outro, mas denominada só como se fosse da escola de Bilac, também é flagrante), apesar de características tão distintas.