Na época em que publicou Sodoma e Gomorra (romance que, de certa forma, é um pouco informe, pois Proust não teve tempo de revisá-lo inteiramente), o quarto romance da série da “Busca do tempo perdido”, Proust contrariou alguns de seus contemporâneos. O amigo Robert de Montesquiou afirmou que a obra era “uma mistura de idealismo e devassidão”. O escritor André Gide não hesitou em dizer que “aquilo tudo [era] uma ofensa à verdade”. Jean Cocteau costumava dizer que “Proust é um desalmado, não tem coração”. Lucien Daudet radicaliza: “É um inseto atroz”. Paul Claudel chamava o autor de “velha judia sem escrúpulos”. Na obra A literatura e o mal, George Bataille esclarece : “Mais hábil do que Sade, Proust, ávido pelo gozo e pelo prazer, legou ao vício a cor detestável do vício, a condenação da virtude. Se dissemos que não há virtudes na obra, não é porque ela não alcançou o prazer, mas porque, alcançando o prazer, pretendeu-se também alcançar a virtude”.
Para a mentalidade geral da época,Proust perpetuou o mais indecoroso de todos os crimes, arruinando as “leis” de proibição às fantasias sexuais e dissolvendo os limites da crença numa “única raça” sexual. No caminho de Swann, o escritor já colocava a figura feminina numa encenação de amor lésbico. Na verdade, Proust sequestra da história da literatura e das artes a figura feminina, tão iconicamente colocada, para transformá-la em um resguardo de homossexualidade.
Nas primeiras linhas de Sodoma e Gomorra,Proust vai – à maneira de um psicólogo ou de um sexólogo moderno – dissertando um estudo da sexualidade de modo muito precioso (e menos castrador possível, é claro). No centro de suas argumentações, encontra-se o choque de todas as alteridades, o embate das várias minorias com a maioria. Pouco a pouco, o herói conviverá no romance entre o supremo refinamento e a tendência à degradação.
Na Busca do tempo perdido,há quatro grandes momentos de revelações da homossexualidade. Sorrateiramente, tais momentos revelam o lado ‘underground’ da sociedade.
1) A primeira “revelação” ocorre em Montjouvain, quando o narrador vê a senhorita Vinteuil realizar um ritual sádico com a amiga Andrée. A moça cospe no porta-retrato do pai, o célebre músico Vinteuil, já falecido.
“(...) desde então pensei que se o Sr. Vinteuil tivesse podido assistir a essa cena, mesmo assim não teria perdido a fé no bom coração da filha, e talvez não estivesse de todo enganado. Certamente, nos hábitos da Srta. Vinteuil a aparência do mal era tão completa que seria difícil ver sua realização perfeita senão numa natureza sádica; é de preferência à luz da ribalta dos teatros do bulevar, do que sob a lâmpada de uma verdadeira casa de campo, que se pode ver uma moça fazer a amiga cuspir sobre o retrato de um pai que só viveu para ela; e somente o sadismo pode dar um fundamento, na vida, à estética do melodrama.”
2) A segunda aparição da homossexualidade aparece, quando, escondido no pátio do palacete da família de Guermantes, o narrador assiste ao “combate”, ou seja, o jogo amoroso, entre o Barão de Charlus e o alfaiate Jupien
“Piscando contra o sol, parecia sorrir quase; visto assim em repouso e como que ao natural, achei em seu rosto algo de tão afetuoso, de tão desarmado, que não pude deixar de pensar como o Sr. de Charlus se zangaria caso soubesse estar sendo observado; pois, no que me fazia pensar esse homem tão inflamado, que tanto gabava a sua virilidade, a quem todo mundo parecia odiosamente efeminado, no que ele de imediato me fazia pensar de tal modo possuía os traços, a expressão e o sorriso, era numa mulher!”
3) Num terceiro momento, o narrador descreve o funcionamento social do mundo de Sodoma. Tudo acontece no bordel de Jupien, quando o Barão de Charlus é simbolicamente “crucificado”, como se tivesse sido preso a uma cruz sádica; Charlus é submetido a uma sessão de sadomasoquismo por um grupo de rapazes marinheiros.
“Ora, as aberrações são como os amores em que a tara doentia recobriu tudo, a tudo contaminou. Mesmo na mais louca, o amor ainda se reconhece. A insistência do Sr. de Charlus em pedir que lhe atassem aos pés e às mãos anéis de solidez comprovada, em exigir a barra de justiça e, pelo que me disse Jupien ferozes acessórios muito difíceis de obter, mesmo com o auxílio de marinheiros; pois seriam para infligir suplícios cujo emprego já está abolido até a bordo do navios, onde a disciplina é mais rigorosa -, revelava, no fundo, o seu sonho a virilidade atestada, se preciso, por atos brutais, e toda a iluminura interior, invisível para nós, mas da qual projetava alguns reflexos, com insígnia de justiça e tortura feudais, decorados por sua imaginação medieval.”
4) Uma última revelação é o riso de Albertine que denuncia, de alguma forma, ao herói-narrador o lesbianismo da jovem. Esse riso abre ao herói os caminhos misteriosos de Gomorra.
“E desde algum tempo, desde que sem dúvida me adivinhara o pensamento, nenhum pedido para convidar ninguém, nenhuma palavra, nem mesmo um desvio de olhar, que se tornara silencioso e sem finalidade, e com a fisionomia distraída e vaga de que eram acompanhados, tão revelador como outrora a sua magnetização. Pois bem, não me era possível censurá-la ou fazer perguntas a propósito de coisas que ela teria declarado ser tão ínfimas, tão insignificantes, que eu conservara na memória só pelo prazer de “esmiuçar”. Já é difícil dizer “por que olhou para aquela moça?” e mais ainda “por que não olhou para ela?” E no entanto eu bem sabia, ou pelo menos teria sabido, se tivesse desejado acreditar, não nas afirmações de Albertine, mas em todos os nadas incluídos em um olhar, provados por ele e por tal ou qual contradição nas palavras, contradição da qual muitas vezes só me dava conta muito tempo depois de tê-la deixado, que me fazia sofrer a noite inteira, na qual não tinha mais coragem de voltar a falar, mas que nem por isso deixava de honrar minha memória de vez em quando com suas visitas periódicas. Muitas vezes, naqueles simples olhares furtivos ou desviados na praia de Balbec, ou nas ruas de Paris, eu podia indagar-me se a pessoa que os provocava não era somente um objeto de desejos no momento em que passava, mas uma conhecida antiga, ou então uma moça de quem lhe haviam falado e da qual, quando eu vinha a sabê-lo, ficava estupefato de que lhe houvessem falado, de tão fora que a julgava de todos os conhecimentos possíveis de Albertine. Mas a Gomorra é um puzzle feito de pedaços que vêm de onde menos se espera. Foi assim que, em Rivebelle, compareci a um grande jantar, onde por acaso conhecia, ao menos de nome, as dez convidadas, tão dissemelhantes quanto possível, e todavia perfeitamente ajustadas, de forma que jamais vi um jantar tão homogêneo, muito embora tão composto.”
É importante notar, nesses quatro episódios, uma espécie de “círculo vicioso da virtude”. Há uma real teatralização do vício, um espelho, um reflexo, entre vício e virtude. Proust põe ambos numa relação de correspondências, tal como cada coisa se organiza teatralmente no julgamento social. O que acredita-se ser uma “subversão” nesses rituais sadomasoquistas é, na verdade, uma pureza e uma naturalidade que estão de comum acordo com as "boas maneiras" regidas pela sociedade.
Nesse sentido, o olhar proustiano é transversal. Procura desvelar algo que está escondido, mas, ao mesmo tempo, apresenta o modus operandi de perceber-se do que se está se escondendo. Este é o prodígio da escrita proustiana na Busca. O não-dito é uma anagogia de Sodoma
O objetivo de Proust não é de instaurar uma analogia, mas o de criar uma “anal-gógica” no modo de funcionamento linguageiro, costumeiro, dos desejos abdicados, da libido, dos amores enfadonhos e extravagantes, que reinam na terra de Sodoma. Não se trata, então, de representar a beleza, mas de mostrar com graça (e sem feiura) as partes vergonhosas da sociedade que, antes de Proust, nenhum escritor havia verdadeira e concretamente escolhido descrever.
As “partes vergonhosas” da sociedade não são os grupos minoritários ou marginalizados. Ao contrário do que se possa pensar, uma das grandes ideias da Buscaé que Sodoma é simplesmente um outro “nome” dado ao mundo. A maneira clandestina em que está organizada toda a “economia da homossexualidade”, tal como Proust descreve, é a forma em que o mundo (as relações “normais” do mundo) também está libidinalmente, econômica e linguísticamente organizado. Na Busca, a homossexualidade que parece ser “anormal”, não fazendo parte da norma, constitui a verdadeira normalidade, subterfeminóiderânea, das relações entre os seres.
Proust também questiona a categoria dos “invertidos” para reforçar a ideia feminóide da homossexualidade. Influenciado pela psiquiatria de sua época, o escritor esboça mais ou menos uma teoria. Para ele, seres puramente homossexuais não existem. Por mais masculina ou mais dissimulada que possa ser a aparência do gay, seu gosto pela virilidade proviria de uma femininilidade profunda. Na verdade, um “homossexual é o que um invertido mais honesta e intimamente pretende ser”, diz Proust. A ideia de que um invertido seja ‘um homem que não é realmente um homem’ e ‘que só pode ser atraído por um homem que não é como ele’ (eis o paradigma do desejo do homossexual afeminado pelo brutamontes) leva Proust a pensar que o homossexual é, antes de tudo, uma “mulher” que gosta de homens que, por sua vez, gostam de mulheres. Por isso, alguns personagens masculinos da Busca parecem ser “mulheres de espírito”.
Na mais longa frase da Busca (com aproximadamente 1600 palavras), que pode ser considerada um prólogo do romance Sodoma e Gomorra, o narrador evoca a aparição dos chamados “homens-mulheres”. Esta sociedade “repousa numa identidade de gostos, aparências, de hábitos, de perigos, de aprendizagem, de saber, de tráfico; glossários”. Eis uma sociedade verdadeira! secreta e eficaz, translúcida e onipresente! Os próprios membros que aspiram a não ser conhecidos logo se reconhecem por traços naturais ou de convenção, involuntárias ou intencionais. Nesta sociedade todos são forçados a proteger o seu segredo; tendo a sua parte no segredo dos outros.
Proust refuta, desse modo, a ideia de que a homossexualidade seja minoritária e perseguida e, por esta razão (a de ser também mal vista), ela tem necessidade de ser “subterrânea”. Proust pensa que a homossexualidade é a verdadeira norma (uma norma que, de tanto mostrar-se evidente, não precisa ser dita). Em outras palavras, ela faz tanto parte da norma que ela nem precisa mostrar-se como norma.
A “comunidade homo”, como dizemos hoje, não tem culpa nenhuma. Pois, segundo Proust, ela é virtuosa. O autor chega a comparar a “sociedade dos invertidos”, que é normal, igualitária, à união da Esquerda francesa com a Federação Socialista.
Obviamente, os grupos literários de homossexuais se sentiram traídos por Marcel Proust. Alegavam que o autor da Busca não idealizara as relações homossexuais. Mas Proust explica que toda a sociedade funciona transversalmente segundo uma “homossexualidade de princípio”. A homossexualidade é uma norma absoluta, mas subterrânea. Ela não se organiza como uma marginalidade; elabora-se numa sociedade transversal (num tipo de “franco-maçônica”) que repousa sobre “uma identidade”. Esta sociedade utópica está, finalmente, terminada. Um embaixador é amigo de um prisioneiro, um barão e um alfaiate (Charlus e Jupien) podem relacionar-se sob o olhar dissecatório de um narrador, que faz arborescências das espécies humanas analisando o botânismo moral que existe por detrás delas.
Nesse sentido, o olhar proustiano é transversal. Procura desvelar algo que está escondido, mas, ao mesmo tempo, apresenta o modus operandi de perceber-se do que se está se escondendo. Este é o prodígio da escrita proustiana na Busca. O não-dito é uma anagogia de Sodoma
O objetivo de Proust não é de instaurar uma analogia, mas o de criar uma “anal-gógica” no modo de funcionamento linguageiro, costumeiro, dos desejos abdicados, da libido, dos amores enfadonhos e extravagantes, que reinam na terra de Sodoma. Não se trata, então, de representar a beleza, mas de mostrar com graça (e sem feiura) as partes vergonhosas da sociedade que, antes de Proust, nenhum escritor havia verdadeira e concretamente escolhido descrever.
As “partes vergonhosas” da sociedade não são os grupos minoritários ou marginalizados. Ao contrário do que se possa pensar, uma das grandes ideias da Buscaé que Sodoma é simplesmente um outro “nome” dado ao mundo. A maneira clandestina em que está organizada toda a “economia da homossexualidade”, tal como Proust descreve, é a forma em que o mundo (as relações “normais” do mundo) também está libidinalmente, econômica e linguísticamente organizado. Na Busca, a homossexualidade que parece ser “anormal”, não fazendo parte da norma, constitui a verdadeira normalidade, subterfeminóiderânea, das relações entre os seres.
Proust também questiona a categoria dos “invertidos” para reforçar a ideia feminóide da homossexualidade. Influenciado pela psiquiatria de sua época, o escritor esboça mais ou menos uma teoria. Para ele, seres puramente homossexuais não existem. Por mais masculina ou mais dissimulada que possa ser a aparência do gay, seu gosto pela virilidade proviria de uma femininilidade profunda. Na verdade, um “homossexual é o que um invertido mais honesta e intimamente pretende ser”, diz Proust. A ideia de que um invertido seja ‘um homem que não é realmente um homem’ e ‘que só pode ser atraído por um homem que não é como ele’ (eis o paradigma do desejo do homossexual afeminado pelo brutamontes) leva Proust a pensar que o homossexual é, antes de tudo, uma “mulher” que gosta de homens que, por sua vez, gostam de mulheres. Por isso, alguns personagens masculinos da Busca parecem ser “mulheres de espírito”.
Na mais longa frase da Busca (com aproximadamente 1600 palavras), que pode ser considerada um prólogo do romance Sodoma e Gomorra, o narrador evoca a aparição dos chamados “homens-mulheres”. Esta sociedade “repousa numa identidade de gostos, aparências, de hábitos, de perigos, de aprendizagem, de saber, de tráfico; glossários”. Eis uma sociedade verdadeira! secreta e eficaz, translúcida e onipresente! Os próprios membros que aspiram a não ser conhecidos logo se reconhecem por traços naturais ou de convenção, involuntárias ou intencionais. Nesta sociedade todos são forçados a proteger o seu segredo; tendo a sua parte no segredo dos outros.
Proust refuta, desse modo, a ideia de que a homossexualidade seja minoritária e perseguida e, por esta razão (a de ser também mal vista), ela tem necessidade de ser “subterrânea”. Proust pensa que a homossexualidade é a verdadeira norma (uma norma que, de tanto mostrar-se evidente, não precisa ser dita). Em outras palavras, ela faz tanto parte da norma que ela nem precisa mostrar-se como norma.
A “comunidade homo”, como dizemos hoje, não tem culpa nenhuma. Pois, segundo Proust, ela é virtuosa. O autor chega a comparar a “sociedade dos invertidos”, que é normal, igualitária, à união da Esquerda francesa com a Federação Socialista.
Obviamente, os grupos literários de homossexuais se sentiram traídos por Marcel Proust. Alegavam que o autor da Busca não idealizara as relações homossexuais. Mas Proust explica que toda a sociedade funciona transversalmente segundo uma “homossexualidade de princípio”. A homossexualidade é uma norma absoluta, mas subterrânea. Ela não se organiza como uma marginalidade; elabora-se numa sociedade transversal (num tipo de “franco-maçônica”) que repousa sobre “uma identidade”. Esta sociedade utópica está, finalmente, terminada. Um embaixador é amigo de um prisioneiro, um barão e um alfaiate (Charlus e Jupien) podem relacionar-se sob o olhar dissecatório de um narrador, que faz arborescências das espécies humanas analisando o botânismo moral que existe por detrás delas.
Jediel Gonçalves
*[Barra de justiça: no original barre de justice, termo da Marinha que designa uma barra de ferro empregada para castigar aos marinheiros.
Ilustrações:1."Banhistas",Paul Cézanne.
2. “As duas amigas”, de Toulouse-Lautrec (1858).
3."Jovem com um gato", Giovanni Lanfranco (1620).
4 e 5. Salo, ou os 120 dias de Sodoma (1976), filme de Pier Paolo Pasolini.
6. Filme “Em Busca do tempo perdido”, Nina Companeez (2010).