(Do livro Confissões de atelier, inédito)
INFÂNCIA
riqueza de menino é corgo
e mãe ocupada
também calo de bilosca
febre em dia de semana
pernoite de prima
um trem vindo
quando no meio do pontilhão
riqueza de menino
é não saber o dilúvio
quando se aquieta
OUTRA CASA
demora acomodar os meninos
os móveis a memória
os vasos ressentem do sol mudado
também as roupas os poucos retratos
e os bibelôs de si desencontrados
mesmo o corpo denuncia
o descompasso das sombras
o de-viés do colchão os ruídos
que a custo encaixam
nossos fantasmas
NOTAS EM AZUL
Genius loci
súbito o porão é o umbigo do mundo:
não pelo rumor de certo fantasma caseiro
ou pela descoberta da passagem para Lilliput
não pelo quase-útero não por seus bichos líquidos
não pelas perguntas do escuro ou pela terra sem males
quando exumado por mãos meninas
um simples caco de louça azul
ordena as chuvas dispõe as grandezas
e resume o jantar de que fomos excluídos
Thalassa
do céu ao cobalto
um deus descomunal dança
indiferente às civilizações
ao engenho humano aos outros deuses
indiferente também ao menino
que olha o azul do mar
com a alegria de quem compreende
a dádiva de ter começo e fim
Occhi neri
a cena exigia e ela os fez azuis
(um abismo que a beleza sabe)
a maré atingiu minha cintura
os cabelos nublaram
um deserto cresceu até o palco
para submeter a paixão
foi preciso alcançar o camarim
desmascarar a atriz
e arrancar aqueles olhos negros
HORROR VACUI
Para Angie
há, maiúsculo, um vazio:
de quando o brinquedo quebra?
de quando um não o apetite emperra?
de quando chegamos depois da festa?
de quando nenhuma voz afaga ou impreca?
de quando o amor às avessas?
de quando o espelho desconcerta?
de quando ninguém bate à porta
e tudo é espera?
– de quando nem pergunta resta.
AMOR FATI
a mão indestra para a linha
a ruga abrupta o erro crasso
um lance de dados quando soma zero
o ouvido que só sabe a martelo
um amor impróprio falho ou incerto
o espelho como duplo-cego
um ódio secreto aos adjetivos que lhe emprestem
um substantivo seus verbos seu eros
a vida que poderia ter sido e é
– alegria e peste
A GAVETA, SEUS VAZIOS
quem poderia
fechá-la em pregos
quando súbito a sombra
adorna seus vazios?
quem poderia abri-la
se mesmo ausente o vento
só existe em suas dobras?
(arrumar a gaveta
engendra suspeitas)
ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS
e morrer faz sentido
póstumas
as flores realçam
consentem o baile ao vestido
nesta página
atravessa a infância
com suas forquilhas
como o que se perdeu
pela palavra
como a morte
a apurar seus lugares
OS SAPATOS DA MENINA
Para Fernanda Tabet
Aos rés do chão, um corpo inteiro principia – seus fantasmas, suas faltas, suas fantasias. E cresce dos restos pisados, da beleza menor, do outono morto. Não sabe a céu nem mar. Cresce com a infância: noites brancas e cirandas guardadas na caixa de sapatos. Cresce contra a infância: um desvio para o vermelho. Suas agulhas costuram enredos, fetiches, outras noites. O sapato assina na mulher os desejos da menina – mesmo morta.
CONFISSÕES DE ATELIER
III
uma linha que resuma Babel:
porque escrever não é só enfermaria
também há banhos de sol e o pijama
com que o corpo posterga seus calos
XII
Para Waltércio Caldas
da família relógio espelho
também martelo
livro assina com outros
a aula frágil
abre-se ao lapso:
aparelho de errar em seus disfarces
a ponto de romper o que nele trama
(entre aspas
onde a dança é segura)
XIII
Em homenagem a Maurice Blanchot
o que pode o poeta
se o desastre escreve
com o corpo em festa?
se sob sua rubrica
a obra o desconhece
e o silêncio obriga
à pena do infindo
mesmo e único livro?
será sua a tarefa
de afagar a febre
no signo que opera
essa mão inimiga
desde sempre entregue
ao que falta e cifra
no homem o limite
entre letra e eclipse?
XXII
poema não guarda memória
poema não toma assento
não ensaia
poema não sabe
o que fazer no intervalo
não tem encontro marcado
nem remédio para
poema não tem nome
nem o que corrigir
poema não escreve cartas
não espera não repousa
poema avia
os afazeres de outro corpo
XXV
que seja como guardar os mortos
ou festa nos cabelos da criança
que seja o exceto um lapso em aberto
ou apenas o aroma do pão diário
que seja o número que nos falta
para adornar o abismo
que seja unha na carne de Chrónos
ou um outro modo de dizer te amo
que seja como as muitas tentativas
de assentar a mão à rubrica
Foto: Gleb Garanich/ Reuters
* * *
Fernando Fábio Fiorese Furtado nasceu em Pirapetininga, Zona da Mata Mineira, em 21 de março de 1963. Residindo em Juiz de Fora (MG) desde 1972, participou do grupo de poetas, escritores, artistas plásticos e fotógrafos que, durante a década de 1980, editou o folheto de poesia Abre Alas e a revista D´Lira. Poeta e contista, publicou em 1982 Leia, não é cartomante, ao qual se seguiram Exercícios de vertigem & outros poemas (1985) e Ossário do mito (1990), todos de poesia. Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa de pós-graduação em Letras – mestrado em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, obteve o título de Doutor em Ciência da Literatura/Semiologia na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lançou em 2002, "Corpo Portátil" (Escrituras), no qual reuniu poemas de 1986 a 2000. Escreve no blog homônimo.