Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

POEMAS DE FERNANDO FIORESE

$
0
0






(Do livro Confissões de atelier, inédito)



INFÂNCIA


riqueza de menino é corgo
e mãe ocupada

também calo de bilosca
febre em dia de semana
pernoite de prima
um trem vindo
quando no meio do pontilhão

riqueza de menino
é não saber o dilúvio
quando se aquieta
 
OUTRA CASA


demora acomodar os meninos
os móveis a memória

os vasos ressentem do sol mudado
também as roupas os poucos retratos
e os bibelôs de si desencontrados

mesmo o corpo denuncia
o descompasso das sombras
o de-viés do colchão os ruídos
que a custo encaixam
nossos fantasmas
 
NOTAS EM AZUL

Genius loci

súbito o porão é o umbigo do mundo:
não pelo rumor de certo fantasma caseiro
ou pela descoberta da passagem para Lilliput
não pelo quase-útero não por seus bichos líquidos
não pelas perguntas do escuro ou pela terra sem males

quando exumado por mãos meninas
um simples caco de louça azul
ordena as chuvas dispõe as grandezas
e resume o jantar de que fomos excluídos


Thalassa

do céu ao cobalto
um deus descomunal dança
indiferente às civilizações
ao engenho humano aos outros deuses

indiferente também ao menino
que olha o azul do mar
com a alegria de quem compreende
a dádiva de ter começo e fim


Occhi neri

a cena exigia e ela os fez azuis
(um abismo que a beleza sabe)
a maré atingiu minha cintura
os cabelos nublaram
um deserto cresceu até o palco

para submeter a paixão
foi preciso alcançar o camarim
desmascarar a atriz
e arrancar aqueles olhos negros


HORROR VACUI

Para Angie

há, maiúsculo, um vazio:
de quando o brinquedo quebra?
de quando um não o apetite emperra?
de quando chegamos depois da festa?
de quando nenhuma voz afaga ou impreca?
de quando o amor às avessas?
de quando o espelho desconcerta?
de quando ninguém bate à porta
e tudo é espera?

– de quando nem pergunta resta.


AMOR FATI

a mão indestra para a linha
a ruga abrupta o erro crasso
um lance de dados quando soma zero
o ouvido que só sabe a martelo
um amor impróprio falho ou incerto
o espelho como duplo-cego
um ódio secreto aos adjetivos que lhe emprestem
um substantivo seus verbos seu eros
a vida que poderia ter sido e é
– alegria e peste



A GAVETA, SEUS VAZIOS


quem poderia
fechá-la em pregos
quando súbito a sombra
adorna seus vazios?

quem poderia abri-la
se mesmo ausente o vento
só existe em suas dobras?

(arrumar a gaveta
engendra suspeitas)



ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS


e morrer faz sentido

póstumas
as flores realçam
consentem o baile ao vestido

nesta página
atravessa a infância
com suas forquilhas

como o que se perdeu
pela palavra

como a morte
a apurar seus lugares



OS SAPATOS DA MENINA

Para Fernanda Tabet

Aos rés do chão, um corpo inteiro principia – seus fantasmas, suas faltas, suas fantasias. E cresce dos restos pisados, da beleza menor, do outono morto. Não sabe a céu nem mar. Cresce com a infância: noites brancas e cirandas guardadas na caixa de sapatos. Cresce contra a infância: um desvio para o vermelho. Suas agulhas costuram enredos, fetiches, outras noites. O sapato assina na mulher os desejos da menina – mesmo morta.

 

CONFISSÕES DE ATELIER

III


uma linha que resuma Babel:
porque escrever não é só enfermaria

também há banhos de sol e o pijama
com que o corpo posterga seus calos

 

XII


Para Waltércio Caldas

da família relógio espelho
também martelo
livro assina com outros
a aula frágil

abre-se ao lapso:
aparelho de errar em seus disfarces
a ponto de romper o que nele trama

(entre aspas
onde a dança é segura)


XIII


Em homenagem a Maurice Blanchot

o que pode o poeta
se o desastre escreve
com o corpo em festa?
se sob sua rubrica
a obra o desconhece
e o silêncio obriga
à pena do infindo
mesmo e único livro?

será sua a tarefa
de afagar a febre
no signo que opera
essa mão inimiga
desde sempre entregue
ao que falta e cifra
no homem o limite
entre letra e eclipse?

 

XXII


poema não guarda memória
poema não toma assento
não ensaia

poema não sabe
o que fazer no intervalo
não tem encontro marcado
nem remédio para

poema não tem nome
nem o que corrigir

poema não escreve cartas
não espera não repousa

poema avia
os afazeres de outro corpo

 

XXV


que seja como guardar os mortos
ou festa nos cabelos da criança

que seja o exceto um lapso em aberto
ou apenas o aroma do pão diário

que seja o número que nos falta
para adornar o abismo

que seja unha na carne de Chrónos
ou um outro modo de dizer te amo

que seja como as muitas tentativas

de assentar a mão à rubrica





Foto: Gleb Garanich/ Reuters



*    *    *





Fernando Fábio Fiorese Furtado nasceu em Pirapetininga, Zona da Mata Mineira, em 21 de março de 1963. Residindo em Juiz de Fora (MG) desde 1972, participou do grupo de poetas, escritores, artistas plásticos e fotógrafos que, durante a década de 1980, editou o folheto de poesia Abre Alas e a revista D´Lira. Poeta e contista, publicou em 1982 Leia, não é cartomante, ao qual se seguiram Exercícios de vertigem & outros poemas (1985) e Ossário do mito (1990), todos de poesia. Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa de pós-graduação em Letras – mestrado em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, obteve o título de Doutor em Ciência da Literatura/Semiologia na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lançou em 2002, "Corpo Portátil" (Escrituras), no qual reuniu poemas de 1986 a 2000. Escreve no blog homônimo.






Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles