Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

CONTO DE ROBERTO DUTRA JR.

$
0
0







DEMÔNIOS DE DOMINGO



Tava lá naquela janela, observando a chuva e aguardando o domingo dar de si. Seja lá o que isso quer dizer. Era o último cigarro. Chovia e nem passava pela cabeça sair para comprar mais. Por isso brincava e tamborilava no parapeito com o último cigarro. Era uma daquelas raras tardes do Rio em que a chuva vinha de nuvens tão pesadas que os postes acendiam a rua, enganados pela escuridão prematura. Fazia frio demais para a janela tão aberta.

Foi calmamente para o aparelho de som e clicou uns botões e uma voz doce e lenta surge acompanhada por um piano e logo depois as vassourinhas alisando o couro da caixa da bateria… “…April in Paris, this is a feeling / That no one can ever reprise…” Sarah quase recita a letra, desafiada por um saxofone. Ele caminha leve pela sala, quase feliz pela música que na letra triste escondia a alegria de se expressar. A força do canto sentido do fundo do ser. Lembranças tenras dos ombros morenos dela, que nunca passam.

Nisso, voltando da cozinha, um sujeito magricelo, com a pele esturricada e vermelha, a cara franzida de tédio, nu, e com uma caneca fumegante de café nas mãos, passa e se atém em frente a uma das caixas de som.

— Nossa você fica mesmo desprezível em dias de chuva.
— O que você está fazendo com meu café?
— Ah, isso? Não sei como chama isso de café. Bebi borras mais palatáveis em cidades mais congestionadas que essa.
—  O que quer dizer criatura? You thing of evil!
— Ah, o bardo… bah! Você não pensa que tem demônios particulares, ou pensa? Não é assim que funciona, atormentei outros antes de você, alguns até criativos. Artistas, por assim dizer. Sempre somos requisitados para os artistas. Eu, que já acumulo milênios e não tenho mais garra para excêntricos… Aff… Resultado? Tenho que atormentar frustrados como você, cheios de lembranças e remorsos empilhados e, ai que derrota… uma máquina de escrever…
— Você está nu e sentado na minha mesa de jantar, com essas bolas vermelhas na minha cadeira…
— Ora não mude de assunto. Você acha que só por que sou um demônio eu tenho que ficar de pé toda vez que resolvo beber café? Vocês humanos não entendem as coisas mais elementares.
— Eu não quero que me entendam. Não quero que falem comigo. Não quero que vocês falem comigo, nem que as pessoas falem comigo também. Eu só quero que me leiam.
— Ah! Filosoficamente falando…
— Filosoficamente falando, foda-se a filosofia. Sou humano, falível e egoísta e no final só faz sentido o que eu quero. O que não faz sentido é ouvir um demônio pessoal que quer ser moralizador e ainda reclamar do meu café.
Lasciate ogni speranza voi ch’entrate!
— Você vai conjurar Dante?
— Ora, todas as maldições foram proferidas por humanos, melhor pra nós que apenas reciclamos.
— De volta pro armário! Já!
— Tá, tá, blá blá… entendi… nada de estragar Summertime…
— Nada de criticar o café, estragar minha tarde e nem de reclamar da Sarah!

A moral da história? mantenha seus demônios pessoais sempre no armário. Nada deve estragar uma tarde de chuva, nem um café e muito menos macular Sarah em April in Paris.

A próxima faixa foi mesmo Summertime.








imagens: canecas da Zazzle


*    *    *






Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.






Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548