As engrenagens do poema
machucam-se em mim.
Mas eu não tenho
a menor vontade
de ter misericórdia,
muito menos de abrigar
remorsos entre os papéis
obscuros de meu inventário.
Os alaridos do poema
amplificam-se em mim
e minha boca duplica-se
em multidões e rugidos,
meus apelos recobrem
sem cerimônia
todas as enzimas e reentrâncias,
todas as salas de concerto do corpo.
Os vestuários do poema
rasgam-se em mim
e você me pede calma,
me pede um minuto de silêncio
pela vontade absurda
sufocada pela moralidade,
me pede para vestir de novo
a sobrecasaca,
As catástrofes do poema
cumprem-se em mim
e não há maior calamidade
que a palavra
entre as obsessões de um homem,
tudo está à beira de um colapso,
profecias cumprindo-se à mesa do almoço
e ainda pode ser bem pior.
As genitálias do poema
eriçam-se em mim
e oscilo entre dois gestos impiedosos:
castro e agravo
a libido de uns dicionários,
subterfúgios da mulher
que me faz doer entre as pernas
O poema me sussurrando
algo que passa longe da poesia
pede-me um ritual
sob raios de supernova
e variações lunares,
pede-me uma sobriedade ingênua
e esporrando canduras:
assina minha confissão mais insana
Eu mijando na folha sagrada do poema
amaldiçoo o que não for extremos
e medo,
e quem olha grandes monumentos
sem orações fervorosas
para vê-los ao rés do chão, revirando pó.
Eu ejaculando na folha sagrada do poema
escarro sobre a cabeça dos sóbrios
e dos brinquedos,
sobre quem passa a milênios
de meu sarcasmo e debaixo da mesma sacada.
Eu lambendo a folha sagrada do poema
deixo as impressões vegetais
de meu desespero escondido
em metros de língua e audácia,
deixo os últimos acontecimentos
que sempre serão os primeiros
nos corredores de déjà vu
Eu incinerando a folha sagrada do poema
lanço as cinzas
como o farelo de dados
num estranho jogo de víboras,
acendo todas as luzes da casa
e então lembro que nunca houve casa,
nunca houve poema,
nunca houve palavra
antes de eu aprender a mentir