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5 poemas de Sérgio Nazar David

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MÁQUINA DE ESCREVER


Vivi numa estação sem chuva e sem estio.
Os vendavais mais puros sabiam-me
no corpo a distantes acontecimentos:

eram noites de gigantes que a um menino
não convinham. Eu era impuro mesmo quando,
meio bêbado, meio santo, guardava

o pouco que tinha numa noz secreta e úmida.
Ó minha máquina de escrever branquinha,
ó meu amor mais infame, quanto de teu sal

são lágrimas, são mar, são a seiva ainda
a me embalar! Nada me faz mais feliz
que o tique-taque dos teus braços dentro

dos flocos do travesseiro ditando-me o futuro.
Meu pai viu-me debulhar o alfabeto
nas molas do meu cérebro infantil.

Tudo que fez na vida resumir-se-ia nisto:
dar-me a máquina Remington portátil
e contrafeito reconciliar-se comigo.
  

 
O SOM

 Atriz: Cristina Mayrink


Quando um som fica no ar (onde
já não estamos) ele existe.
O som sozinho não é o mesmo de

quando em sua mudez o vazio
ergue muros, vácuos, hiatos,
intermitências, a que chamamos

silêncio. O som sozinho na caixa –
por exemplo – é o grito do
esquecimento. O som sozinho

no corpo é o remoer da vida
querendo. O som sozinho do mar
é nunca poder chegar.

Existe o som sem dono. Existe
o som sem casa. Existe o som sem
norte, sem mãos que o toquem.

Existe o som sem ouvido.
É como soa em nós
tudo que ouvimos ontem.



UM HOMEM


Atriz: Malu Valle


Um homem guarda-se quando já não brota
como um sândalo no rosto a ternura de antes.
Fecha-se em casa com o cão, um livro gasto,
um bocado de sementes. Engole a pílula sem

receita desde que caiba no estômago. Apenas
o que sabe a sua sorte giza o ato nas cordas
do futuro. Disse-me um astrônomo que mapas
e segredos rasgam-se quando chega a hora.

Legou-me um escafandro antes de morrer
com 101 anos. Toda vez que olho o monstro
sob a cama do meu quarto de criança penso:

um homem nunca deve contentar-se. Se tem
papel, caneta e é poeta, faça versos (livres) aos
que vivem, aos que sonham e aos que dormem. 



UM CÃO E O SEU PELO

No aquário em chafariz da praça
há um cão que pousa o focinho
na pedra perto da água. O rosto

sobre a fibra encarnada dos peixes:
Narciso sem ninfa que o enfeite.
As manchas do pelo também são
peixes. Peixes na selva do corpo

não nadam, não abrem a boca,
não gritam, quando uma parte
do dorso explode em cansaço.

Os peixes na pele robusta do cão
são braços inalcançáveis, sombras
da liberdade, que brilham mal
chega a noite nas ondas frias do lago.



AMOR

Atriz: Leticia Spiller

 
Vou construir um aquário
para que venhas bebericar peixes
enquanto durmo
dentro do teu corpo de pombo
da madrugada.

Hoje refiz o trajeto daquela
fria e leda madrugada.
Primeiro cortei-te sem que acordasses,
depois fiquei esperando que renascesses
meu filho amado.

O filho que terei se banhará de sangue
sem morrer jovem. Com as mãos
pego-o como um pai
deve pegar um filho: brando e solitário
em sua concha platônica.

Treme assim só o passarinho
pela primeira vez 
seguro
por uma
mão de homem.

 

Ilustração: deviantART




Sérgio Nazar David (1964) nasceu em Além Paraíba (MG). É poeta, ensaísta e professor de Literatura Portuguesa (UERJ). É autor dos livros de poemas Onze moedas de chumbo (RJ: 7Letras, 2001; 2ª. edição, 2014), A primeira pedra (7Letras, 2006, indicado ao Prêmio Portugal Telecom 2006; 2ª. edição, 2014) e Tercetos queimados (7Letras, 2014); e de ensaios Freud e a religião (RJ: Jorge Zahar, 2003), O século de Silvestre da Silva (vol. 1, Lisboa: Prefácio, 2007; vol. 2, RJ: FAPERJ/ 7Letras, 2007). É membro da Equipe Garrett (Centro de Literatura Portuguesa / Faculdade de Letras de Coimbra). Organizou as edições críticas de Cartas de amor à Viscondessa da Luz (7Letras, 2004; e Famalicão: Quasi Edições, 2007)  e de Correspondência familiar (Lisboa: Imprensa Nacional-Cada da Moeda, 2012, “Menção Honrosa” – Prémio Grémio Literário), de Almeida Garrett. Integrou a antologia 6 poetas de Argentina & 6 poetas de Brasil (Buenos Aires, Bajo la Luna, 2011), org. e trad. de Camila do Valle e Teresa Arijón. Tem colaborado em importantes jornais, revistas e periódicos: Diário de Notícias (Lisboa), O Público (Lisboa), O Primeiro de Janeiro (Porto), Colóquio/Letras(FCG, Lisboa), Arquivos (FCG/Lisboa), Prosa & Verso (O Globo/RJ), Mais! (Folha de São Paulo), Poesia Sempre (BN/RJ) e Relâmpago (Lisboa).






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