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Trinca - parte I

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Iberê Camargo



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48 degraus rangiam pesadelos o peso dos pêndulos tiquetaqueava horas em fendas as paredes pinturas superpostas como camadas de tragédias de eras glaciais nós mesmos em outras estações inabitáveis temporais todos os cômodos mofados da casa em cacos nos pés descalços pois era assim a nossa dança o nosso olhar ainda não contaminado do bafio rançoso a emanar das tábuas do assoalho balaústre parapeito portas de duas bandas trincos destinos aferrolhados nada apontava os grilhões grisalhos mas tudo já estava posto na mesa do filho do amoníaco e do carbono podia ser entrevisto na fumaça da cannabis sativa madrugada afora vejo agora dentro do riso e do sol nascente ácaros e fungos tecendo o pântano na alma

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antes dos degraus a porta caía aos pedaços tábuas como remendos inúteis qualquer bêbado a abriria só com o hálito de álcool em madrugada morta mas uma tarde dois fugitivos subiram o gólgota ombros e braços musculosos carregavam bicicleta como se fosse o trono de rainha pagã por trás dos raios das rodas rodava uma miragem de cabelos negros e pequenas sardas as formas incabíveis em vestido gelo de folhas verde limão era a insônia era a luxúria era a loucura subindo as escadas era meu coração rangendo à passagem de tempestade de carne era um mocassim caramelo pisando as dobras do gozo em lençóis lavados de solidão a maldade despontava no sorriso como pura promessa de ruínas um casal principiava então a costurar abismos em quem os aprisionava ao pânico do olhar

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sete passos atrás como sete palmos abaixo voltar à sala aprisionar páginas de poemas em gaiolas de vidro limpar a mesa de perfume antigo a madeira corroída amoroso enlace de cupins e folhas arrumar a trouxa de desenhos aquarelas guaches telas desmanchadas cores de cidade sem neurônios a pastel novamente um colapso à frente do último degrau a bicicleta batia na parede ocre o carregador suado exausto parava para tomar fôlego mãos na cintura por trás das rodas dez degraus abaixo uma cidade flutuava seios me apontando a direção do inferno por trás das rodas uma alça desmoronava alvura de ombro demoníaco por trás das rodas todas as musas libertinas saíam de leituras noturnas desinventadas de linguagem a aura magnetizando cabelos esticados no abismo do alto do último degrau como um deus estrangulado nas mãos de Hernán Cortés ou de Pizarro tudo o que podia ser visto era um sistema solar aprisionado pelo aro 26 da bicicleta suspensão a meio metro do piso

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capas de discos de vinil ainda no chão sacados à noite lançados como discos-voadores negros pela janela arremessos portentosos repletos de álcool era lindo de se ver a heroica de Beethoven voar Karajan abaixo Mussorgski pictures at an exhibitionsupersônico no ar noturno espatifar-se Chopin prelúdios para piano na madrugada morta Parsifal wagneriano a lança na ferida de Amfortas quebrada em queda livre naquele momento era impossível saber que o santo graal subiria escadas coberto parcialmente por rodas de bicicleta provavelmente roubada o corpo todo era o cálice profanado o cálice que beberia os lábios devoraria o viço da carne em tensão máxima o desejo quase tocando o forro de madeira do teto sobre vinil intacto de Nora Ney um poema guardava momento anterior à loucura que trouxera a polícia à porta no meio da noite versos truncados incompletos incapazes de poesia ensaiavam última estrofe: “acordam na ópera acordes inaudíveis / neles a massa sonora se desmancha / para que a voz ressoe solo e vírus / na ária, lacerada a carne gangrenada / a garganta os pulmões os ossos / no chão sem sinal de harmonia” rasura premonitória da impossibilidade de coro



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