Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

POEMAS DE ADÃO VENTURA

$
0
0
O poeta Adão Ventura: foto de autor desconhecido





ENCANTAMENTO


Você agora
é arco-íris
sol
de Três Barras
cristal
de São Gonçalo do Rio das Pedras
- Um caminhão transporta estrelas
do Pico do Itambé
- Um raio corta de fora a fora
os céus do Serro




STAND-BY


O poeta
enquanto vivo,
enquanto visgo
de palavras e vida.

O poeta e a Babel
pelo seu papel
de estar no mundo.




AGORA


É hora
de amolar a foice
e cortar o pescoço do cão.

— Não deixar que ele rosne
nos quintais
da África.

        É hora
de sair do gueto/eito
       senzala
e vir para a sala
— nosso lugar é junto ao Sol.



ORIGEM


Vestir a camisa
de um poeta negro
- espetar seu coração
com uma fina
ponta de faca
- dessas antigas,
marca Curvelo,
em aço sem corte,
feito para a morte

- E acomodar
no exíguo espaço
de uma bainha
sua dor-senzala.
Papai
levava tempo
para redigir uma carta

Já mamãe Sebastiana de José Teodoro
teve a emoção de assinar seu
                                nome completo
já quase aos setenta anos




EU, PÁSSARO PRETO


eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.




PAISAGENS DO JEQUITINHONHA


Quem dança no vento
no ventre das águas
do Jequitinhonha?

Quem percorre o leve
de breves passos
nas margens do Araçuaí?

Quem detém dos pássaros
o ziguezaguear de vôos
recompondo sombras
sobre lixívias e lavras
de Chapada do Norte?

Quem imprime
em argila
a singeleza dos gestos
dos artesãos de Minas Novas?




FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE


faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.

faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.

faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.




O poeta Adão Ventura nasceu em Santo Antonio do Itambé, Minas Gerais, em 1946. Formado em  Direito pela UFMG, escreveu "Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul" (1970), "As musculaturas do Arco do Triunfo" (1976), "A Cor da Pele" (1981), "Jequitinhonha - Poemas do Vale" (1980), "Texturaafro" (1992) e "Litanias de Cão" (2002). Foi professor de Literatura Brasileira na University of New Mexico na década de 70. Morreu em junho de 2004.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548