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Luz! - Priscila Lira

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Ilustração: Nelson Falcão



Luz!

            Prenha. Sabá estava, de novo, prenha. Deitada na rede, imaginava a quantas andava a horta, morria de raiva por sequer poder dar umas boas varadas naqueles. Pular na água, roubar pitomba do vizinho, fácil, trabalhar, nada. Nasceria em dia de santo? Se não, qual seria o nome?
            Água, água, água, começou e não parava de sair. Molhou a rede, pingou no chão. Com cara de quem sabia, depois de sete luzes, exatamente o que viria, pediu que chamassem a parteira.
            A paisagem já negra, o rio calmo, o mato barulhento. O filho da Sabá vai nascer! Gritaram na porta da mulher. Um pulo da rede, uns minutos na canoa e lá estava ela, de pernas abertas, repetindo os gritos dos outros sete nove meses. O sangue escorria, as mãos da parteira buscavam o mosquitinho, as coxas tremiam, o rosto suava, sempre vai doer, não acostuma, nunca é igual.
            As crianças andando no escuro, pegando água do rio, sonolento, para limpar o desespero. Bem que ele podia ter aparecido durante o dia, mas que atrasado, ou amanhã de manhã. Tinha que ser agora?
            O sangue escorria, as mãos da parteira buscavam o mosquitinho, as coxas tremiam, o corpo suava, sempre vai doer, não acostuma, nunca é igual. Meu Deus! Cadê esse menino que não sai? A sombra da morte, que pedregulho atrapalhava o voo dessa criança aqui pro mundo de uma vez por todas?
            Sabá pediu o fim, as forças se esvaiam, a sombra tomava forma, dava azia no coração. Sangue, sangue, sangue. Meu Deus! Cadê esse menino que não sai? A silhueta da morte, que pedregulho atrapalhava o voo dessa criança aqui pro mundo de uma vez por todas?
Um braço.
            Um braço saiu por entre o buraco das suas pernas. A paisagem já negra, o rio calmo, o mato barulhento. Sangue. Negrume. Meu Deus. Sete filhos pra criar.
            Agora, com cinco membros e inútil, Sabá foi carregada para a canoa. Três braços, duas pernas. Uma estrela do rio de mãos dadas com a morte, no meio do escuro. A água ninguém via, a lanterna focava o nada, o grito se perdia, o sangue encharcava os lençóis, lambuzava seus filhos, a parteira, a canoa. O braço do mosquitinho ganhava um tom arroxeado, a estrela perdia o brilho a cada gota vermelha. Negrume. O caminho para a cidade parecia se estender ao infinito. Naquela noite, o mato silenciou para ouvir os gritos que vinham do nada e nonada se desfaziam. Sete filhos pra criar, sangue. Os lençóis sendo espremidos no rio para suportar mais gotas e gotas. As coxas tremiam, o corpo suava, sempre vai doer, não acostuma, nunca é igual. Meu Deus!
            A última curva do rio chegava, a estrela, com sua quinta ponta dependurada, prestes a se soltar, não gritava mais, empalidecia junto ao braço de seu filho. Morreremos sendo um. Que isso acabe de uma vez. Sete filhos. Sangue. Sete filhos. A canoa atraca na margem do rio.
            Outra escuridão. Quem percorrerá o escuro dessa estrada até a cidade, até o hospital?
            Corre, menino, corre, fecha os olhos e corre, não faz diferença. Corre menino, corre, salva a vida da tua mãe. Corre. Respira, fecha os olhos, ela não vai morrer, salva teu irmão, salva a tua mãe. Corre, menino! Corre! Perde o medo do escuro. O bicho papão está na margem do rio. Fecha os olhos, respira. Corre! Corre! Corre! Corre, menino! Salva a vida da tua mãe! Salva o teu irmão! Corre! Corre! Corre! Corre! Corre! Corre! Corre! Corre! Esquece a noite, esquece a cegueira do medo, esquece o bicho papão. A tua mãe vai morrer, corre! Esquece o cansaço. Corre. A tua mãe. Corre. O teu irmão. Corre. O bicho papão. Corre. O escuro. Corre. A morte.
            À margem do rio, a quinta ponta da estrela perdeu seu último feixe de luz. Amoleceu, escorregou por entre as pernas da Sabá. O choro silenciado, o voo interrompido. A estrelinha nasceu empestada daquele negrume todo, faltaram postes e lâmpadas para lhe dar energia.
            A luz da cidade. Corre menino! Grita! Chama a ambulância!
A MINHA MÃE TÁ MORRENDO!
            O clarão da sirene. Os lençóis encharcados. As crianças chorando. A parteira com os olhos esbugalhados de assombro. A estrela, agora com quatro pontas, era segurada na terra por seus últimos fios de luz e sangue. É levada pelos enfermeiros esterilizados.  O rio, o mato, a noite permanece a mesma, em todos os cantos, silêncio. O quinto braço da estrela do rio, assim como fazem as do mar, viverá, lá onde ninguém sabe onde fica. A estrela-mãe refaz o caminho corrido pelo menino.
            O dia amanhece. Uma chamada no rádio pede que os amigos e desconhecidos da Sebastiana levem suas gotas vermelhas para ajudá-la a ganhar novo brilho. A tristeza, a dor, a perda, o luto prosseguem e diluem com os meses.
             A estrela continua a caminhada com quatro pontas, cuida da horta, grita com as crianças, beija o marido. O quinto braço renasce, duas vezes, sem escuridões. Nove filhos pra criar. A estrelinha, que ficou à margem do rio, pisca, no desconhecido, para seus irmãos.


Priscila Lira

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